Por Rodrigo da Cunha Pereira
O novo Código de Processo Civil é uma das leis de maior espectro de
incidência, pois é aplicável direta ou supletivamente a todos os processos
que não tenham natureza penal. É a lei das leis, pois é ele que viabiliza
e possibilita a aplicação de direitos. A partir de 18 de março deste ano,
todos os processos, inclusive os que já estão em andamento, passarão a ser
regidos por essas novas regras. Como obra do humano, certamente há falhas,
que serão corrigidas ao longo do tempo e que só serão detectadas no dia a
dia de sua aplicação.
Um dos impactos mais significativos do novo CPC está no Direito de
Família. Poderia ter sido melhor, mas está aí o que foi possível. Se o
Estatuto das Famílias (PLS 470/2013), elaborado pelo Instituto Brasileiro
de Direito de Família (IBDFAM) e proposto pela senadora Lídice da Mata
(PSB-BA), for aprovado, ele fará essas melhorias, já que o título VIII
desse estatuto trata de processo e procedimento. E aí, sim, teremos um
processo específico e particularizado para esse ramo do Direito, que é o
mais humano e sensível em relação a todos os outros. O processo de
família, devido às suas peculiaridades e particularidades, quebra a máxima
“o que não está nos autos, não está no mundo”. O que orbita fora do
processo, o amor e ódio entre as partes, é, na verdade, o que determina o
desfecho desses processos judiciais.
Quando os restos do amor vão parar no Judiciário, tecendo verdadeiras
histórias de degradação do outro em nome de reivindicação de direitos, na
verdade estão buscando, na maioria das vezes, o tamponamento de seu
desamparo estrutural. Por isso, o processo judicial de família é a
materialização de uma realidade subjetiva. E o novo CPC parece ter
entendido isso e fez avanços significativos. Utilizou pela primeira vez
uma expressão do campo da psicanálise, “sujeitos” do processo, como título
do livro III, introduzindo um significante novo para a relação processual;
segundo, porque criou um capítulo específico para as ações de família
(Cap. X — artigos 693 a 699); e, terceiro, porque introduz novos
significados e significantes ao culto da sentença: “Nas ações de família,
todos os esforços serão empreendidos para a solução consensual da
controvérsia, devendo o juiz dispor do auxilio de profissionais de outras
áreas de conhecimento para mediação e conciliação” (artigo 694).
A cultura do litígio em Direito de Família está com os dias contados.
Obviamente, isso afeta o mercado da advocacia, abre mercado no campo
jurídico para profissionais “psis”, tornando o Direito de Família
transdisciplinar. Devemos nos adaptar aos novos tempos. Afinal, nós somos
apenas meio para se atingir um fim, que é buscar a Justiça. Mesmo antes do
novo CPC, já havíamos começado a diminuir essa litigiosidade, quando
paramos de discutir culpa pelo fim da conjugalidade com a EC 66/2010,
proposta pelo IBDFAM por meio do então deputado federal Sérgio Barradas
(BA), que simplificou o sistema de divórcio no Brasil. Um dos grandes
méritos do novo CPC é a introdução da mediação, que certamente ajudará a
implementar o espírito e a cultura da mediação, que em síntese significa
trocar o bate-boca pelo bate-papo e atribuir reponsabilidade aos sujeitos
para que eles mesmos, muito melhor do que um juiz, possam resolver o
conflito. Em síntese, os métodos autocompositivos de solução de conflitos
é que dão a tônica desse novo CPC (artigos 165 e seguintes).
Os avanços foram bons, embora pudessem ter sido melhores. Na execução de
alimentos, consolidou o que a jurisprudência já tinha consagrado em
relação à prisão do devedor, ou seja, apenas pelos últimos três meses
pode-se pedir prisão, e absorveu sugestão do IBDFAM que já estava no
Estatuto das Famílias (artigo 230) em relação ao protesto do nome do
devedor de alimentos (artigo 582, parágrafo 3°); o foro competente para
processar e julgar ações de família em geral passa a ser sempre o da parte
mais vulnerável (artigo 49 a 53), bem melhor que o CPC de 1973, que
privilegiava a mulher, mesmo quando ela fosse a parte menos vulnerável;
absorveu novos conceitos de Direito de Família, tratando o processo
envolvendo alienação parental com destaque, e, embora não tenha previsto o
“depoimento sem dano”, determina que o juiz esteja acompanhado por
especialista (artigo 699); com o objetivo de não acirrar o litígio, o
requerido será citado para audiência de tentativa de conciliação sem a
cópia de petição inicial (artigo 695).
É que a petição inicial contém a versão dos fatos que, verdadeiros ou não,
provocam na parte contrária sentimento de ódio, e, acima de tudo, elas não
se reconhecem ali naquela história narrada pela versão do outro. Também
foi um grande avanço o julgamento antecipado do mérito (artigo 356), que
certamente vai agilizar milhares de processos. Agora, não há mais dúvida
de que pode, por exemplo, decretar o divórcio e continuar no mesmo
processo as outras discussões conexas, como guarda, convivência e
alimentos.
Porém, nem tudo são flores. O novo CPC perdeu uma boa oportunidade de
substituir velhas expressões que carregam consigo um sentido equivocado e
já superado pelo Direito de Família, como, por exemplo, “visitação” e
“regime de visitas” (artigo 693 e 731). Tal expressão traz consigo uma
ideia de frieza e formalidade e já havia sido substituída pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA) por “convivência familiar” e já consagrada
pela melhor doutrina e jurisprudência; a interdição (artigo 747, III) não
considerou os tratados internacionais e o princípio da dignidade da pessoa
humana, mas a Lei 13.145/15.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência pode corrigir isso; as ações de
alimentos continuam pelo rito especial da Lei 5.478/68 e sua execução,
apesar dos avanços, perdeu uma boa oportunidade de criar procedimento
próprio, como propõe o Estatuto das Famílias do IBDFAM. É inadmissível
cobrar uma dívida alimentar pelo mesmo procedimento que se cobra um cheque
ou uma nota promissória.
A participação do Ministério Público nos processos de família (artigo 698)
deveria ter sido mais bem prestigiada, inserindo sua competência em uma
verdadeira política pública para crianças e adolescentes, concentrando sua
nobre e importante função — quase missão — no enunciado do artigo 176:
“(...) atuará na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos
interesses e direitos sociais e individuais indisponíveis”. Esse é o seu
imperativo ético, que inclui ir além de fiscal da lei, mas principalmente
tomar medidas efetivas para dar um lar a crianças e adolescentes
depositadas em abrigos por anos a fio, sem voz e sem vez.
E, por fim, uma das questões que já nem são mais tão polêmicas, pois a
prática da vida sempre vence qualquer teoria, é sobre o instituto da
separação judicial. No projeto original, não havia menção a ela. Na Câmara
dos Deputados, as forças conservadoras conseguiram inserir esse inútil
instituto. E, assim, a expressão separação judicial aparece uma única vez
no artigo 23, III.
Nos outros, em que aparece a palavra separação, 53, I; 189, II; 693; 731;
732 e 733, deve ser interpretada como separação de fato, separação de
corpos, separação em decorrência da união estável. Separação judicial não
existe mais. Ela foi eliminada do ordenamento jurídico brasileiro,
reafirmando o Estado laico, pela EC 66/2010. O objetivo maior da pretensão
da permanência do instituto da separação judicial é reacender a discussão
da culpa, há muito já superado. Portanto, o artigo 23, III é
inconstitucional e natimorto.
O Direito de Família ficará melhor com o novo CPC. Certamente teremos que
enfrentar inúmeras questões de direito intertemporal. Porém, a vida, o ir
fazendo, vai mostrando o melhor caminho. Metaforicamente, processo é um
caminho percorrido e a percorrer, no qual as partes vão depositando suas
angústias, insatisfações, frustações e também a sensação de que alguém foi
enganado, para que o Judiciário retifique e repare o erro do outro e diga
quem tem razão. O processo, para além da função de busca e materialização
de direitos, funciona também como um importante ritual de passagem, agora
facilitado por essas novas regras.
Rodrigo da Cunha Pereira é advogado e presidente nacional do Instituto
Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), mestre (UFMG) e doutor (UFPR)
em Direito Civil e autor de livros sobre Direito de Família e Psicanálise.
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