O tema da gratuidade de justiça necessitava
de uma grande reordenação legislativa, diante da obsolescência da Lei
1.060/50 que sobrevivia com o auxílio da doutrina e jurisprudência.
O novo texto do Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015) é a prova viva
de que a matéria relativa a gratuidade de justiça possuía muitas
controvérsias advindas do confuso texto de sua lei antecessora.
Inexplicavelmente, no entanto, a opção de nosso legislador foi a de
preservar alguns poucos dispositivos da Lei 1.060/50 e sua consequente
sobrevivência ao lado da disciplina do novo CPC.
Um tema interessante no plano doutrinário e que levará a um bom debate diz
respeito à natureza jurídica da dispensa conferida pelo revogado artigo 3º
da Lei 1.060/50, atualmente incorporado ao artigo 98 do CPC/2015. Seria a
gratuidade de justiça uma hipótese de isenção ou de imunidade.
De forma muito rápida, é importante distinguir as hipóteses de isenção ou
imunidade tributária. Toda a vez que dispensa do tributo advém de um
mandamento constitucional a hipótese é de imunidade, enquanto que a
isenção ocorre quando a fonte normativa da dispensa for a lei.
A nosso ver, podemos indicar como hipóteses de imunidade, posto que se
referem a dispensa de tributos previstas no texto constitucional, as
situações descritas nos incisos do artigo 5º, XXXIV (são a todos
assegurados, independentemente do pagamento de taxas:
a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou
contra ilegalidade ou abuso de poder;
b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de
direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal;); LXXVI (são
gratuitos para os reconhecidamente pobres, na forma da lei: a) o registro
civil de nascimento; b) a certidão de óbito) e LXXVII (são gratuitas as
ações de habeas corpus e habeas data, e, na forma da lei, os atos
necessários ao exercício da cidadania) todos da Constituição Federal.
Sempre entendemos que a isenção conferida pela gratuidade de justiça
constituiria uma hipótese de dispensa tributária, já que a sua origem
estaria no texto normativo da Lei 1.060/50. Na verdade, a gênese da
gratuidade de justiça derivaria do preceito estatuído pelo artigo 5º,
LXXIV, mas dele não faria parte, já que a dispensa adveio do texto
infraconstitucional que trouxe a sua regulamentação.
Em recente julgado [1] e em sentido contrário, o Supremo Tribunal Federal
foi além e entendeu que as isenções contidas na Lei 1.060/50
constituiriam, hipótese também de imunidade. O objeto do julgado era a
recepção do artigo 12 da Lei 1.060/50, pela ordem constitucional de 1988.
De acordo com o STF, quando a norma da Lei 1.060/50 referia-se ao termo
isenção, na realidade o que se pretendia reconhecer era uma imunidade
extraída do artigo 5º, LXXIV da CRFB. Essa imunidade, no entanto,
dependeria da ocorrência de uma situação fática relativa a
hipossuficiência de recursos.
Para o Supremo Tribunal Federal, quando a Constituição assegura o direito
à assistência jurídica integral e gratuita prestado pelo Estado aos que
comprovarem insuficiência de recursos também estaria ali contida a
imunidade para o pagamento das despesas processuais.
Apesar de discordar do entendimento do pretório excelso, posto que o
artigo 5º, LXXIV materializa o direito a assistência jurídica, que não se
confunde com o direito à gratuidade de justiça, o qual é derivado da lei,
como forma de operacionalizar o acesso à justiça, creio que esta
fundamentação terá grande repercussão na disciplina do novo CPC,
especialmente no artigo 98, §5º, como alguns já suscitam.
É que o novo CPC estabelece a possibilidade de deferimento da gratuidade
parcial por meio da dispensa individualizada do pagamento de alguns atos
processuais, assim como a redução percentual de seu valor.
Na realidade, o direito ao parcelamento sempre constou da Lei 1.060/50,
apesar da péssima redação do seu artigo 13. O grande problema é que
ninguém nunca aplicou a literalidade do dispositivo e a gratuidade de
justiça sempre foi tratada a base do tudo ou nada.
O propósito do novo CPC foi o de buscar adequar a capacidade contributiva
do hipossuficiente ao custo da máquina judiciária, permitindo que as
partes beneficiárias da gratuidade de justiça gozassem de uma isenção
correlata a sua condição de fortuna.
Ocorre que se o STF entende que a gratuidade de justiça está contida no
artigo 5º, LXXIV, da Constituição, que estatui um direito à assistência
jurídica integral e gratuita, torna-se possível defender que a gratuidade
parcial do CPC/2015 seria inconstitucional, por violar o preceito
constitucional que estabelece a gratuidade integral.
Concluir-se-ia que se a Constituição não trouxe qualquer flexibilização à
gratuidade de justiça, o emprego das expressões integral e gratuita
traduziriam o reconhecimento de uma imunidade tributária que não seria
passível de flexibilização pela legislação ordinária.
Trata-se de um entendimento plenamente defensável, especialmente com o
posicionamento do STF, apesar de com ela não concordarmos. Acreditamos que
sendo o direito à gratuidade de justiça uma isenção, cujo propósito é o de
materialização do acesso à justiça e instrumento da assistência jurídica
prestada em favor do hipossuficiente, não haveria a dita
inconstitucionalidade.
Resta aguardamos eventual manifestação de nossa mais alta Corte a esse
respeito.
Franklyn Roger Alves Silva é defensor público do estado do Rio de Janeiro,
mestre e doutorando em Direito Processual pela Uerj e coautor do livro
"Princípios Institucionais da Defensoria Pública".
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