Antes da celebração
do casamento, os noivos têm a possibilidade de escolher o regime de bens
a ser adotado, que determinará se haverá ou não a comunicação
(compartilhamento) do patrimônio de ambos durante a vigência do
matrimônio. Além disso, o regime escolhido servirá para administrar a
partilha de bens quando da dissolução do vínculo conjugal, tanto pela
morte de um dos cônjuges, como pela separação.
A legislação brasileira prevê quatro possibilidades de regime
matrimonial: comunhão universal de bens (artigo 1.667 do CC/02),
comunhão parcial (artigo 1.658), separação de bens – voluntária (artigo
1.687) ou obrigatória (artigo 1.641, inciso II) – e participação final
nos bens (artigo 1.672).
A escolha feita pelo casal também exerce influência no momento da
sucessão (transmissão da herança), prevista nos artigos 1.784 a 1.856 do
CC/02, que somente ocorre com a morte de um dos cônjuges.
Segundo o ministro Luis Felipe Salomão, da 4ª turma do STJ, "existe, no
plano sucessório, influência inegável do regime de bens no casamento,
não se podendo afirmar que são absolutamente independentes e sem
relacionamento, no tocante às causas e aos efeitos, esses institutos que
a lei particulariza nos direitos de família e das sucessões".
Regime legal
Antes da lei 6.515/77 (lei do divórcio), caso não houvesse manifestação
de vontade contrária, o regime legal de bens era o da comunhão universal
– o cônjuge não concorre à herança, pois já detém a meação de todo o
patrimônio do casal. A partir da vigência dessa lei, o regime legal
passou a ser o da comunhão parcial, inclusive para os casos em que for
reconhecida união estável (artigos 1.640 e 1.725 do CC/02).
De acordo com o ministro Massami Uyeda, da 3ª turma do STJ, "enquanto na
herança há substituição da propriedade da coisa, na meação não, pois ela
permanece com seu dono".
No julgamento do REsp 954.567, o ministro mencionou que o CC/02, ao
contrário do CC/16, trouxe importante inovação ao elevar o cônjuge ao
patamar de concorrente dos descendentes e dos ascendentes na sucessão
legítima (herança). "Com isso, passou-se a privilegiar as pessoas que,
apesar de não terem grau de parentesco, são o eixo central da família",
afirmou.
Isso porque o artigo 1.829, inciso I, dispõe que a sucessão legítima é
concedida aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente
(exceto se casado em regime de comunhão universal, em separação
obrigatória de bens – quando um dos cônjuges tiver mais de 70 anos ao se
casar – ou se, no regime de comunhão parcial, o autor da herança não
tiver deixado bens particulares).
O inciso II do mesmo artigo determina que, na falta de descendentes, a
herança seja concedida aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge
sobrevivente, independentemente do regime de bens adotado no casamento.
União estável
Em relação à união estável, o artigo 1.790 do CC/02 estabelece
que, além da meação, o companheiro participa da herança do outro, em
relação aos bens adquiridos na vigência do relacionamento.
Nessa hipótese, o companheiro pode concorrer com filhos comuns, na mesma
proporção; com descendentes somente do autor da herança, tendo direito à
metade do que couber ao filho; e com outros parentes, tendo direito a um
terço da herança.
No julgamento do REsp 975.964, a ministra Nancy Andrighi, da 3ª turma do
STJ, analisou um caso em que a suposta ex-companheira de um falecido
pretendia concorrer à sua herança. A ação de reconhecimento da união
estável, quando da interposição do REsp, estava pendente de julgamento.
Consta no processo que o falecido havia deixado um considerável
patrimônio, constituído de imóveis urbanos, várias fazendas e milhares
de cabeças de gado. Como não possuía descendentes nem ascendentes,
quatro irmãs e dois sobrinhos – filhos de duas irmãs já falecidas –
seriam os sucessores.
Entretanto, a suposta ex-companheira do falecido moveu ação buscando sua
admissão no inventário, ao argumento de ter convivido com ele, em união
estável, por mais de 30 anos. Além disso, alegou que, na data da
abertura da sucessão, estava na posse e administração dos bens deixados
por ele.
Meação
De acordo com a ministra Nancy Andrighi, com a morte de um dos
companheiros, entrega-se ao companheiro sobrevivo a meação, que não se
transmite aos herdeiros do falecido. "Só então, defere-se a herança aos
herdeiros do falecido, conforme as normas que regem o direito das
sucessões", afirmou.
Ela explicou que a meação não integra a herança e, por consequência,
independe dela. "Consiste a meação na separação da parte que cabe ao
companheiro sobrevivente na comunhão de bens do casal, que começa a
vigorar desde o início da união estável e se extingue com a morte de um
dos companheiros. A herança, diversamente, é a parte do patrimônio que
pertencia ao companheiro falecido, devendo ser transmitida aos seus
sucessores legítimos ou testamentários", esclareceu.
Para resolver o conflito, a 3ª Turma determinou que a posse e
administração dos bens que integravam a provável meação deveriam ser
mantidos sob a responsabilidade da ex-companheira, principalmente por
ser fonte de seu sustento, devendo ela requerer autorização para fazer
qualquer alienação, além de prestar contas dos bens sob sua
administração.
Regras de sucessão
A regra do artigo 1.829, inciso I, do CC/02, que regula a sucessão
quando há casamento em comunhão parcial, tem sido alvo de interpretações
diversas. Para alguns, pode parecer que a regra do artigo 1.790, que
trata da sucessão quando há união estável, seja mais favorável.
No julgamento do REsp 1.117.563, a ministra Nancy Andrighi afirmou que
não é possível dizer, com base apenas nas duas regras de sucessão, que a
união estável possa ser mais vantajosa em algumas hipóteses, "porquanto
o casamento comporta inúmeros outros benefícios cuja mensuração é
difícil".
Para a ministra, há uma linha de interpretação, a qual ela defende, que
toma em consideração a vontade manifestada no momento da celebração do
casamento, como norte para a interpretação das regras sucessórias.
Companheira e filha
No caso específico, o autor da herança deixou uma companheira, com quem
viveu por mais de 30 anos, e uma filha, fruto de casamento anterior.
Após sua morte, a filha buscou em juízo a titularidade da herança.
O juiz determinou que o patrimônio do falecido, adquirido na vigência da
união estável, fosse dividido da seguinte forma: 50% para a companheira
(correspondente à meação) e o remanescente dividido entre ela e a filha,
na proporção de dois terços para a filha e um terço para a companheira.
Para a filha, o juiz interpretou de forma absurda o artigo 1.790 do
CC/02, "à medida que concederia à mera companheira mais direitos
sucessórios do que ela teria se tivesse contraído matrimônio, pelo
regime da comunhão parcial".
Ao analisar o caso, Nancy Andrighi concluiu que, se a companheira
tivesse se casado com o falecido, as regras quanto ao cálculo do
montante da herança seriam exatamente as mesmas.
Ou seja, a divisão de 66% dos bens para a companheira e de 33% para a
filha diz respeito apenas ao patrimônio adquirido durante a união
estável. "O patrimônio particular do falecido não se comunica com a
companheira, nem a título de meação, nem a título de herança. Tais bens
serão integralmente transferidos à filha", afirmou.
De acordo com a ministra, a melhor interpretação do artigo 1.829, inciso
I, é a que valoriza a vontade das partes na escolha do regime de bens,
mantendo-a intacta, tanto na vida quanto na morte dos cônjuges.
"Desse modo, preserva-se o regime da comunhão parcial de bens, de acordo
com o postulado da autodeterminação, ao contemplar o cônjuge
sobrevivente com o direito à meação, além da concorrência hereditária
sobre os bens comuns, haja ou não bens particulares, partilháveis estes
unicamente entre os descendentes", mencionou.
Vontade do casal
Para o desembargador convocado Honildo Amaral de Mello Castro (já
aposentado), "não há como dissociar o direito sucessório dos regimes de
bens do casamento, de modo que se tenha após a morte o que, em vida, não
se pretendeu".
Ao proferir seu voto no julgamento de um recurso especial em 2011 (o
número não é divulgado em razão de segredo judicial), ele divergiu do
entendimento da 3ª turma, afirmando que, se a opção feita pelo casal for
pela comunhão parcial de bens, ocorrendo a morte de um dos cônjuges, ao
sobrevivente é garantida somente a meação dos bens comuns – adquiridos
na vigência do casamento.
No caso, o TJ/DF reformou sentença para permitir a concorrência, na
sucessão legítima, entre cônjuge sobrevivente, casado em regime de
comunhão parcial, e filha exclusiva do de cujus (autor da herança),
sobre a totalidade da herança.
A menor, representada por sua mãe, recorreu ao STJ contra essa decisão,
sustentando que, além da meação, o cônjuge sobrevivente somente concorre
em relação aos bens particulares do falecido, conforme a decisão
proferida em primeiro grau.
Interpretação
Para o desembargador Honildo Amaral, em razão da incongruência da
redação do artigo 1.829, inciso I, do CC/02, a doutrina brasileira
possui correntes distintas acerca da interpretação da sucessão do
cônjuge casado sob o regime de comunhão parcial de bens.
Em seu entendimento, a decisão que concedeu ao cônjuge sobrevivente,
além da sua meação, direitos sobre todo o acervo da herança do falecido,
além de ferir legislação federal, desrespeitou a autonomia de vontade do
casal quando da escolha do regime de comunhão parcial de bens.
O desembargador explicou que, na sucessão legítima sob o regime de
comunhão parcial, não há concorrência em relação à herança, nem mesmo em
relação aos bens particulares (adquiridos antes do casamento), visto que
o cônjuge sobrevivente já está amparado pela meação. "Os bens
particulares dos cônjuges são, em regra, incomunicáveis em razão do
regime convencionado em vida pelo casal", afirmou.
Apesar disso, ele mencionou que existe exceção a essa regra. Se
inexistentes bens comuns ou herança a partilhar, e o falecido deixar
apenas bens particulares, a concorrência é permitida, "tendo em vista o
caráter protecionista da norma que visa não desamparar o sobrevivente
nessas situações excepcionais".
Com esse entendimento, a 4ª turma conheceu parcialmente o recurso
especial e, nessa parte, deu-lhe provimento. O desembargador foi
acompanhado pelos ministros Luis Felipe Salomão e João Otávio de
Noronha.
Contra essa decisão, há embargo de divergência pendente de julgamento na
2ª seção do STJ, composta pelos ministros da 3ª e da 4ª turma.
Proporção do direito
É possível que a companheira receba verbas do trabalho pessoal do
falecido por herança? Em caso positivo, concorrendo com o único filho do
de cujus, qual a proporção do seu direito?
A 4ª turma do STJ entendeu que sim. "Concorrendo a companheira com o
descendente exclusivo do autor da herança – calculada esta sobre todo o
patrimônio adquirido pelo falecido durante a convivência –, cabe-lhe a
metade da quota-parte destinada ao herdeiro, vale dizer, um terço do
patrimônio do de cujus", afirmou o ministro Luis Felipe Salomão em
julgamento de 2011 (recurso especial que também tramitou em segredo).
No caso analisado, a herança do falecido era composta de proventos e
diferenças salariais, resultado do seu trabalho no Ministério Público,
não recebido em vida. Após ser habilitado como único herdeiro
necessário, o filho pediu em juízo o levantamento dos valores deixados
pelo pai.
O magistrado indeferiu o pedido, fundamentando que a condição de único
herdeiro necessário não estava comprovada, visto que havia ação
declaratória de união estável pendente. O tribunal estadual entendeu
que, se fosse provada e reconhecida a união estável, a companheira teria
direito a 50% do valor da herança.
Distinção
O ministro Salomão explicou que o artigo 1.659, inciso VI, do CC,
segundo o qual, os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge ficam
excluídos da comunhão, refere-se ao regime de comunhão parcial de bens.
Ele disse que o dispositivo não pode ser interpretado de forma conjunta
com o disposto no artigo 1.790, inciso II, do CC/02, que dispõe a
respeito da disciplina dos direitos sucessórios na união estável.
Após estabelecer a distinção dos dispositivos, ele afirmou que o caso
específico correspondia ao direito sucessório. Por essa razão, a regra
do artigo 1.659, inciso VI, estaria afastada, cabendo à companheira um
terço do valor da herança.
Separação de bens
Um casal firmou pacto antenupcial em 1950, no qual declararam que seu
casamento seria regido pela completa separação de bens. Dessa forma,
todos os bens, presentes e futuros, seriam incomunicáveis, bem como os
seus rendimentos, podendo cada cônjuge livremente dispor deles, sem
intervenção do outro.
Em 2001, passados mais de 50 anos de relacionamento, o esposo decidiu
elaborar testamento, para deixar todos os seus bens para um sobrinho,
firmando, entretanto, cláusula de usufruto vitalício em favor da esposa.
O autor da herança faleceu em maio de 2004, quando foi aberta sua
sucessão, com apresentação do testamento. Quase quatro meses depois, sua
esposa faleceu, abrindo-se também a sucessão, na qual estavam
habilitados 11 sobrinhos, filhos de seus irmãos já falecidos.
Nova legislação
O TJ-RJ reformou a sentença para habilitar o espólio da mulher no
inventário dos bens do esposo, sob o fundamento de que, como as mortes
ocorreram na vigência do novo CC/02, prevaleceria o novo entendimento,
segundo o qual o cônjuge sobrevivente é equiparado a herdeiro
necessário, fazendo jus à meação, independentemente do regime de bens.
No REsp 1.111.095, o espólio do falecido sustentou que, no regime da
separação convencional de bens, o cônjuge sobrevivente jamais poderá ser
considerado herdeiro necessário. Alegou que a manifestação de vontade do
testador, feita de acordo com a legislação vigente à época, não poderia
ser alterada pela nova legislação.
O ministro Fernando Gonçalves (hoje aposentado) explicou que, baseado em
interpretação literal da norma do artigo 1.829 do CC/02, a esposa seria
herdeira necessária, em respeito ao regime de separação convencional de
bens.
Entretanto, segundo o ministro, essa interpretação da regra transforma a
sucessão em uma espécie de proteção previdenciária, visto que concede
liberdade de autodeterminação em vida, mas retira essa liberdade com o
advento da morte.
Para ele, o termo "separação obrigatória" abrange também os casos em que
os cônjuges estipulam a separação absoluta de seus patrimônios,
interpretação que não conflita com a intenção do legislador de corrigir
eventuais injustiças e, ao mesmo tempo, respeita o direito de
autodeterminação concedido aos cônjuges quanto ao seu patrimônio.
Diante disso, a 4ª turma deu provimento ao recurso, para indeferir o
pedido de habilitação do espólio da mulher no inventário de bens deixado
pelo seu esposo.