Alienação de coisa móvel e a proteção do consumidor

 

O parecer abaixo é de autoria dos advogados Cláudia Lima Marques e Bruno Miragem como decorrência de consulta formulada pelo IRTDPJBrasil. O texto original foi conservado e não teve revisão dos autores por impossibilidade de comunicação.

PARECER

PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DO CONSUMIDOR E EXIGIBILIDADE DO REGISTRO DO CONTRATO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE COISA MÓVEL NO CARTÓRIO DE TÍTULOS E DOCUMENTOS.

DIÁLOGO DAS FONTES E APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CÓDIGO CIVIL EM MATÉRIA DE PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA (ART. 1868-A, DO CC/2002). A ORDEM PÚBLICA CONSTITUCIONAL DE PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR, QUE DESTACA A PROTEÇÃO DA CONFIANÇA DOS CONSUMIDORES NAS RELAÇÕES QUE PARTICIPAM NO MERCADO DE CONSUMO, TEM NO REGISTRO DO CONTRATO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA JUNTO AOS SERVIÇOS PÚBLICOS DELEGADOS DE REGISTRO UMA PROJEÇÃO DA GARANTIA CONSTITUCIONAL DE PROTEÇÃO DESTE SUJEITO VULNERÁVEL.

O REGISTRO DA PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA DE VEÍCULOS AUTOMOTORES NÃO PODE SER DISCIPLINADO POR ATO ADMINISTRATIVO, INFRALEGAL, EM DISSONÂNCIA COM INTERPRETAÇÃO DE COMANDO LEGAL E CONSTITUCIONAL DE PROTEÇÃO DA CONFIANÇA LEGÍTIMA E DOS INTERESSES DOS CONSUMIDORES.

A MULTIPLICIDADE DE REGISTROS, COM EFICÁCIAS DIVERSAS GERA CONFUSÃO E DESCONHECIMENTO DOS CONSUMIDORES DE VEÍCULOS POR INTERMÉDIO DA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA, O QUE SE AGRAVA COM A REGULAÇÃO DO TEMA POR INTERMÉDIO DE NORMA ADIMINISTRATIVA QUE REGULE EMISSÃO DO REGISTRO E LICENCIAMENTO E RESPECTIVA ANOTAÇÃO DOS REGISTROS ADMINISTRATIVOS DE TRÂNSITO. NECESSIDADE DE SEGURANÇA, TRANSPARÊNCIA E FORMALIDADE ÚNICA EFICAZ NA PROTEÇÃO DO SUJEITO LEIGO E VULNERÁVEL.

 

DA CONSULTA

 

1.Consulta-nos o Instituto de Registro de Títulos e Documentos e de Pessoas Jurídicas do Brasil – IRTDPJBrasil, por intermédio de sua ilustre advogada Dra. Lígia Maria Bernardi, acerca da validade de Portaria do Departamento Estadual de Trânsito do Rio de Janeiro – DETRAN/RJ, de nº 3.044/2003, a qual estabelece que “deixa de ser considerado como “documento padrão” e/ou “documento necessário” de que trata o Anexo “A” da Portaria PRES. DETRAN/RJ nº 2954, de 17 de outubro de 2002, a prova de registro prévio do contrato, celebrado por instrumento público ou particular, em Cartório(s) de Títulos e Documentos, nos casos de alienação fiduciária, reserva de domínio, arrendamento mercantil ou de quaisquer outros gravames.” Notícia, outrossim, que outros departamentos estaduais de trânsito, de diferentes unidades da federação, vem realizando o mesmo procedimento, mediante edição de normas administrativas internas que dispensam o registro do contrato do consumidor ou do comerciante.

2. A referida exclusão da necessidade do contrato ser registrado previamente no Cartório de Registro de Títulos e Documentos, segundo a interpretação do DETRAN-RJ, teria seu fundamento no que dispõe o artigo 1361, Parágrafo 1º, do Código Civil Brasileiro, ao referir: “Constitui-se a propriedade fiduciária com o registro do contrato, celebrado por instrumento público ou particular, que lhe serve de título, no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor, ou, em se tratando de veículos, na repartição competente para o licenciamento, fazendo-se a anotação no certificado de registro”. (grifo nosso)

3. A propriedade fiduciária, ora sistematizada no Código Civil de 2002, é figura jurídica há algum tempo conhecida do direito brasileiro, por intermédio de legislação extravagante, como é o caso do disposto no artigo 66 da Lei Federal nº 4.728, de 14 de julho de 1965, adiante modificado pelo disposto no Decreto-Lei nº 911/69, que dispõe: “Art. 66. A alienação fiduciária em garantia transfere ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta do coisa móvel alienada, independentemente da tradição efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direto e depositário com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de acordo com a lei civil e penal. Parágrafo 1º A alienação fiduciária somente se prova por escrito e seu instrumento, público ou particular, qualquer que seja o seu valor, será obrigatoriamente arquivado, por cópia ou micro filme, no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do credor, sob pena de não valer contra terceiros, e conterá, além de outros dados, os seguintes: a) o total da dívida ou sua estimativa; b) o local e a data do pagamento; c) a taxa de juros, as comissões cuja cobrança for permitida e, eventualmente, a cláusula penal e a estipulação de correção monetária, com indicação dos índices aplicáveis; d) a descrição do bem objeto da alienação fiduciária e os elementos indispensáveis à sua indenização. (...)”.

4. Da mesma forma, o Parágrafo 10 do artigo 66, do Decreto-Lei nº 911/69, dispôs expressamente, que a existência de alienação fiduciária deveria constar expressamente no certificado de registro a que se refere o Código de Trânsito Brasileiro, ou seja, o certificado de propriedade do veículo, o qual se realiza, nos exatos termos da norma em destaque, para fins probatórios.

5. No que diz respeito à Portaria nº 3044/2003, o DETRAN/RJ, informa o IRTDPJBrasil, que aquele Órgão adminstrativo passou a emitir, com fundamento no ato administrativo em questão, o Certificado de Registro de Veículo (CRV), dispensando a  exigência de prévio registro, no Cartório de Títulos e Documentos, dos contratos de alienação fiduciária em garantia, reserva de domínio, arrendamento mercantil ou de quaisquer outros gravames. Como requisitos para emissão do certificado, passou a exigir apenas a inserção de informações, via on-line, por parte das instituições financeiras que assumem a condição de proprietária-alienante ao contratarem a alienação fiduciária de veículos automotores.

6. Do contrato de alienação fiduciária, que constitui a propriedade fiduciária de em imóvel, é espécie contratual largamente reconhecida e praticada no direito brasileiro. Note-se que em matéria de comercialização de veículos automotores, inclusive, trata-se de um modo largamente utilizado para consumo destes produtos, isto é, na massa de negócios fiduciários brasileiros envolvendo veículos, sua grande maioria é realizada por consumidores (leigos), e, quanto a determinados veículos, por empresários. No caso dos consumidores, a utilização desta espécie contratual justifica-se em vista dos altos valores dos veículos automotores (por vezes semelhantes mesmo a de bens imóveis), ficando o consumidor, para sua a aquisição, sujeito à tomada de crédito de instituições financeiras (fornecedoras no mercado de consumo, como estabeleceu claramente o Supremo Tribunal Federal na decisão da ADIN 2.591), 1 crédito este destinado a aquisição deste veículo. A constituição da propriedade fiduciária do bem pela instituição financeira se dá como forma de oferecer maiores garantias para o credor, permitindo a retomada do bem na hipótese de inadimplemento do devedor e até pouco tempo, mesmo, a prisão do alienante fiduciário, o consumidor, como depositário infiel!

7. O registro do contrato de alienação fiduciária, assim, no Cartório de Registro de Títulos e Documentos, é providência que, a par dos efeitos legais ordinários de outorga de validade ao negócio jurídico em questão, tem como finalidade a proteção da confiança legítima do adquirente do bem quanto à titularidade da propriedade adquirida, assim como proteção a terceiros que eventualmente, no futuro, possam vir a adquirir o mesmo bem. No caso da propriedade fiduciária de veículos automotores, o registro do contrato, gerando a presunção de publicidade do mesmo, considerando a realidade contratual brasileira, em que esta espécie de contrato, em geral, é celebrada no contexto de uma relação de consumo visando à aquisição do automóvel, a exigência do registro destaca-se como providência de proteção do consumidor, sujeito vulnerável titular de direitos fundamentais assegurados constitucionalmente, e destinatário de ordem pública constitucional de proteção.

8. Esta exigência de registro, no direito brasileiro, encontraria, assim, seu fundamento, dentre outros, na garantia de segurança e publicidade do ato de que se exige a providência, constituindo requisito inafastável de existência e validade do ato na hipótese de a lei exigir-lhe a realização. No caso de veículo automotor, a reconhecer-se que o artigo 1361, Parágrafo 1º do Código Civil dispensaria do registro do contrato no Cartório de Registro de Títulos e Documentos, bastando a hipótese de registro do título no órgão de licenciamento do veículo, retiraria deste contrato a presunção de publicidade com fundamento no que se reconhece a eficácia erga omnes, contra terceiros. Daí a possibilidade de confusão e duplicidade de registros, no DETRAN e nos Cartórios.

9. Informa a consulente que o ato do DETRAN/RJ, de dispensar o registro do contrato de alienação fiduciária, pode dar causa à confusão do consumidor-adquirente do veículo no que se refere à multiplicidade de registros (Cartório de Registro de Títulos e Documentos e DETRAN).

10. Efetivamente, aqui se comprometeria a confiança do consumidor nos registros, criando-se sistema complexo por interpretação de lei nova, quebrando-se a transparência constitucional e a prioridade aos interessados dos consumidores. Segundo informa, a dispensa do registro não significa que este não possa ser feito, em vista da Lei dos Registros Públicos e da competência dos Cartórios de Registros de Títulos e Documentos, o que pode efetivamente criar a duplicidade de registros e confusão na forma prioritária e segura para este tipo de transação.

11. O novo Código Civil brasileiro de 2002 (aqui CC/2002), ao disciplinar a propriedade fiduciária, inclui a alienação fiduciária como espécie de direto real de propriedade, regulando sua constituição e funcionamento por intermédio do disposto nos artigos 1361 a 1368. Não tardou, porém, que novo artigo fosse incluído, o 1368-A . o referido artigo novo foi no Código Civil de 2002 pela Lei nº 10.931, de 2 de agosto de 2004, que dispõe, dentre outros temas, sobre a propriedade fiduciária de bens imóveis, tratando especificamente sobre a hierarquia da relação entre o CC/2002 e a legislação especial. Assim o disposto na norma em comento: “Art. 1368-A: As demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina específica das respectivas leis especiais, somente se aplicando as disposições deste Código naquilo que não for incompatível com a legislação especial”.

12. Neste sentido, e tendo em vista a situação demonstrada, consulta-nos o Instituto de Registro de Títulos e Documentos e de Pessoas Jurídicas do Brasil – IRTDPJBrasil, sobre a possibilidade e regularidade da dispensa, pelos órgãos administrativo de trânsito, do registro do contrato de alienação fiduciária de veículo automotor no Cartório de Registro de Títulos e Documentos, apresentando os seguintes quesitos:

(A) Considerando que o contrato de alienação fiduciária de veículos é espécie contratual em grande parte das vezes como contratos de consumo, aplica-se o Código de Defesa do Consumidor e os deveres estabelecidos por esta norma como mandamento de proteção do consumidor, no que se refere à exigibilidade do registro do contrato de alienação fiduciária no Cartório de Registro de Títulos e Documentos?

(B) Há alguma exceção no artigo 1361, Parágrafo 1º do Código Civil, com relação à constituição da propriedade fiduciária de veículos, a indicar que o registro poderá ser feito na repartição competente para o licenciamento, com mera anotação no certificado de registro? É esta norma fundamento legal válido para a dispensa do registro do contrato de alienação fiduciária no Cartório do Registro Civil de Títulos e Documentos?

(C) Considerando a inclusão em 2004 do artigo 1368-A no Código Civil de 2002, qual o campo de aplicação das disposições relativas à propriedade fiduciária nele previstas? Esta disposição conduz a aplicação apenas subsidiária das disposições do Código Civil sobre este instituto?

(D) A dispensa do registro do contrato de alienação fiduciária de veículos no Registro Civil de Títulos e Documentos, considerando que tais contratos são celebrados, sobretudo por consumidores e se destinam a permitir a aquisição a crédito, de produtos de alto valor, não comprometeria, face à possibilidade de duplicidade de registros, a segurança do consumidor-adquirente do produto, quanto aos riscos do negócio complexo que é a alienação fiduciária? Neste caso, não se estaria violando o princípio da confiança, diminuindo a proteção da confiança legítima dos consumidores, em violação à ordem pública constitucional de proteção a estes sujeitos vulneráveis, titulares de direito fundamental de proteção?

(E) São válidas as normas internas dos órgãos de trânsito como é o caso da Portaria do DETRAN/RJ, que dispensam a apresentação do registro do contrato de alienação fiduciária de veículos para efeito de emitir o licenciamento e proceder a anotação no registro do veículo à luz das normas constitucionais e legais vigentes?

 

 

DO EXAME DO CASO E RESPOSTAS

 

13. Para responder a estas importantes questões, dividimos o exame em duas partes. A Primeira Parte (I), identificando no caso, a existência do dever do Estado de proteção da confiança do consumidor, cujo conteúdo abrange tanto iniciativas de intervenção no mercado de consumo, quanto a adoção de providências, no âmbito de sua atuação administrativa, de proteção da confiança do consumidor, em especial o consumidor-adquirente de veículo, por intermédio de contrato de alienação fiduciária. A Segunda Parte (II), examinando o diálogo das fontes entre o Código Civil, o Código de Defesa do Consumidor e a legislação especial que dispõe sobre a alienação fiduciária em garantia, no que se refere à exigência de registro do contrato de alienação fiduciária, suas funções e sua compatibilidade com a proteção do consumidor constitucionalmente assegurada.

 I-                          O DEVER DO ESTADO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E A PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR ADQUIRENTE DE VEÍCULO POR INTERMÉDIO DO CONTRATO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA.

 14. O dever do Estado de proteção do consumidor foi assegurado pela Constituição ao consagrar o direito fundamental de proteção ao consumidor em seu artigo 5º, inciso XXXII, que dispõe expressamente: “O Estado promoverá a defesa do consumidor forma da lei”. Como já afirmamos em estudo anterior 2, ter direitos constitucionais assegurados é ter liberdade e garantias. 3 Trata-se de uma nova dimensão ou geração de direitos fundamental, direito à ação positiva, direito às prestações do Estado-juiz, do Estado-legislador e do Estado-executivo (Rechte auf positive Handlugen) 4 na forma da lei.

15. No artigo 170, inciso V da CR/88, a defesa deste novo sujeito de direitos, o consumidor, foi consagrada como princípio da ordem econômica, princípio limitador da iniciativa privada ou da autonomia da vontade. A presunção aqui é de desigualdade 5(material, formal, econômica e informativa) entre os sujeitos da relação de consumo, consumidor e fornecedor (art. 4, I do CDC),6 daí a necessidade de proteção especial deste sujeito, individual ou coletivamente considerado no mercado brasileiro, como um corolário do princípio da dignidade da pessoa humana (Art. I, III da CR/88). 7

16. O direito fundamental à proteção significa então um dever de proteção do Estado para este sujeito leigo e vulnerável, significa maior transparência, informação, segurança e cooperação para o bom fim de todos os negócios de consumo, quanto mais para aqueles baseados na confiança, os fiduciários. Aqui por mandamento constitucional as normas são de proteção do sujeito consumidor (individual ou coletivamente) e não do mercado ou de proteção do “consumo” (art. 48 do ADCT e art. 5º, XXXII, da CF/1988), são voltadas para proteção leigo-vulnerável e não para a facilitação, economia de registros ou renda dos fornecedores e das repartições do Estado. Em outras palavras, o Estado-Juiz ao interpretar as normas em diálogo, o Estado-Legislador ao elaborar e modificar o Código Civil de 2002, e principalmente, o Estado-Executivo, inclusive o próprio DETRAN/RJ e todos os demais DETRANs, ao usarem de suas competências executivas e normativas, devem cumprir com o mandamento constitucional de “promover a defesa do consumidor”. O Art. 5º, XXXII, da CR/1988 é, pois, um direito à ação positiva do Estado e de suas repartições competentes em favor do consumidor!

 

A)                         A PROTEÇÃO DA CONFIANÇA DO CONSUMIDOR E A EFICÁCIA DO REGSITRO DO CONTRATO DE VEÍCULO AUTOMOTOR NO REGISTRO DE TÍTULOS E DOCUMENTOS.  

17. Os princípios constitucionais orientam a atuação do Estado e da sociedade, são valores fundantes e dirigentes. No caso da proteção do consumidor, o Constituinte de 1988 não satisfeito de estabelecer esta proteção como princípio, direito e garantia individual (fundamental) e como princípio da ordem econômica e social, ordenou ao legislador ordinário organizar um Código de Defesa do Consumidor, em 120 dias, no art. 48 das Disposições Transitórias da Constituição Federal de 1988. A Constituição elevou esta, que poderia ser uma política ou uma regra, assegurando a concretização destes direitos, exigindo sua regulamentação em “corpo sistemático de leis” 8 diferentes dos Códigos entre iguais já existentes, como o Código Comercial de 1850 ou o Código Civil, o revogado Código de 1916 e o atual de 2002.

18. Orlando Gomes, em sua sabedoria, já identificava que a constitucionalização crescente do Direito Privado teria efeitos fortes de institucionalização e garantia dos direitos assegurados, assim como os direitos dos consumidores, em sede constitucional e afirmava: “A chamada Constituição econômica institucionaliza a propriedade, o contrato e o trabalho”. 9 E completava profeticamente: “os preceitos constitucionais devem ser observados como diretrizes internas do direito civil” 10 e os avanços da sociedade industrial no Brasil “reclamam um novo sistema de valores que seja recolhido pela Constituição e no qual o contrato passará a ter diretrizes internas que refletirão as exigências do capitalismo maduro da era tercnológica e da sociedade de consumo...”11

19. Efetivamente, no Brasil de hoje a proteção do consumidor é um valor constitucionalmente fundamental (Wertsystem), é um direito fundamental (Grundrecht) e é um princípio da ordem econômica da CF/1988 (art. 170V da CF/88). Como ensina Ricardo Lorenzetti, “as normas qualificadas como fundamentais”, entre elas também os princípios e valores constitucionais, não só os direitos fundamentais, “cumprem uma função integrativa, delimitadora e interpretadora do ordenamento jurídico”. 12

20. Assim, mais do que uma política pública, 13 mais do que simples normas infra-constitucionais (regras), 14 reunidas em um Código para a defesa do Consumidor (Lei 8.078/90, aqui denominado CDC, a proteção do consumidor no Brasil constitui princípio de origem constitucional.

21. E é neste princípio constitucional que se consubstancia um dever do Estado de proteção do consumidor, que se consubstancia tanto no exercício de competências legislativas (art. 55, CDC), executivas (art. 55, Parágrafo 1º, do CDC) assim como de implementação de políticas públicas (Política Nacional das Relações de Consumo, art. 4º do CDC), e de organização institucional (art. 5º, CDC). É o que Dürig, citando Nipperdey (mas defendendo a eficácia indireta, através de uma lei de direito privado infraconstitucional, dos direitos fundamentais), denominou de básico caráter institucional de garantia do Direito Privado (seinem Charakter als Rehtsinstitutsgarantie), 15 em que a própria Constituição é a garantia dos direitos do consumidor a vincular o Estado-Juiz, o Estado-Legislador e o Estado-Poder Executivo.

22.Dentre os vários aspectos de proteção legal e constitucional do consumidor está a proteção da confiança legítima, que se manifesta também por intermédio dos princípios da transparência nas relações de consumo, de modo a oferecer segurança ao consumidor em relação aos produtos e serviços que adquire ou utiliza no mercado de consumo. A doutrina italiana alerta que transparência e matéria de consumo e proteção de leigos adquirentes (atuais e futuros) tem muito a ver com a forma. 16

23.A proteção da confiança, segundo Karl Larenz, é princípio imanente de todo o Direito (Vertrauensprinzip). 17  A confiança é um princípio diretriz das relações contratuais. 18 A confiança merece proteção (Vertrauenschutz)19 e é fonte autônoma (Vertrauenstatbestand) de responsabilidade (Vertrauenshaftung)20

24. Ou seja, quando uma pessoa toma uma decisão responsavelmente deve poder razoavelmente determinar seu resultado, mas, em última análise, deve poder confiar na atuação de outros e nas condições e relações criadas por outros para também poder atuar. 21 Proteger esta confiança (motor da atuação do indivíduo na sociedade) tem direta ligação com o princípio da responsabilidade (Verantwortungsprinzip), 22 uma vez que há clara interdependência e reflexos na atuação de todos na sociedade. Em outras palavras, as condutas na sociedade e no mercado de consumo, sejam atos, fatos ou omissões, devem fazer nascer expectativas legítimas naqueles em que despertamos a confiança, os receptores de nossas informações. 23 Para Larenz, o princípio da confiança tem suas raízes no personalismo ético: a pessoa livre, social e racional determinará a si mesmo (Selbstbestimmung), responderá pelos seus atos (Selbstverantwortung) e respeitará a dignidade das outras pessoas ( Achtung der Personwürde), criando maior harmonia nas relações jurídicas. 24

25.No mesmo sentido ensina Niklas Luhman a confiança é um elemento central da vida em sociedade e, em sentido amplo, á a base da atuação/ação organizada (geordneten Handelns) do indivíduo. 25 A confiança, é, portanto, um elemento básico comum ou suporte fático da vida em sociedade (ein elementarer Tatbestand dês sozialen Leben). 26 A confiança nos faz atuar, sair de nossa passividade. Como ensina Lotufo, “etimologicamente, negócio jurídico não significa um ato, mas um conjunto de atividades: nec + otium, que se pode traduzir por não-ócio.” 27

26.Refere Lunhmann que a confiança, ao sentido mais amplo, de confiar na própria expectativa, (Vertrauen im weitesten Sinne eines Zuvertrauens zu eigenen Erwvartungen) 28 nos elementos e na normalidade dos fatos sociais é, em verdade, um fator redutor da complexidade (Vertrauen als Reduktion von Komplexität) 30 pode ser usada aqui no seu sentido contrário, examinando a complexidade atual das relações da vida contratual justamente pela falta de confiança hoje existente.

27. Segundo Niklas Lunhmann, 31 em uma sociedade hipercomplexa como a nossa, quando os mecanismos de interação pessoal ou institucional, para assegurar a confiança básica na atuação não são mais suficientes, pode aparecer uma generalizada “crise de confiança” também na efetividade do próprio Direito. 32 Mosset Iturraspe, alerta que , em nossa sociedade atual a-valorativa e pragmática, passamos a aceitar que pode ser economicamente mais benéfico para os fornecedores causar danos. 33 Mesmo com a imposição do paradigma da boa-fé, pragmaticamente ( e economicamente) causar danos (contratuais e extracontratuais) aos mais fracos ainda pode valer a pena e o Direito procura caminhos de resposta a esta crise de desconstrucção.

28.Ao assegurar direitos á informação, ao comportamento de colaboração dos fornecedores e a atuação decisiva do Estado na proteção dos consumidores, tem-se em vista a proteção da confiança legítima dos consumidores. O Código de Defesa do Consumidor impõe também ao Estado, suas repartições e seus prestadores de serviços públicos de registro e órgãos semelhantes ao DETRAN-RJ que sua atuação positiva em favor dos consumidores, terá como objetivo a transparência das relações de consumo (art. 4º caput), será pautada no reconhecimento da vulnerabilidade especial dos consumidores (art. 4, I), velará ativamente por sua proteção, confiança e a segurança de suas transações com a constante presença do Estado no mercado (art. 4, II), que estas repartições cumprirão com os deveres de boa-fé (proteção da confiança geral, art. 4, III in fine) frente a todos os consumidores. O art. 4 do CDC, afirma:

Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito a sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:

  I – reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo; II -  ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor: a) por iniciativa direta; ... b)pela presença do Estado no mercado de consumo; c) pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho... III – harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores; ... VII – racionalização e melhoria dos serviços públicos; (grifo nosso)

29. O Código de Defesa do Consumidor pressupõe que o Estado e sua repartições cumprirão com os deveres de boa-fé (proteção da confiança geral) frente aos consumidores-cidadãos, concentra-se, assim, em impor claros deveres de informação e transparência aos fornecedores. No momento de tomada de decisão pelo consumidor também deve ser dada a oportunidade do consumidor conhecer o conteúdo do contrato (expressamente art. 46 do CDC), de entender a extensão das obrigações que assume e a abrangência das obrigações do fornecedor de serviços (de crédito) e produtos (automóveis), daí a importância do destaque e clareza das cláusulas contratuais da contratação por adesão (Art. 54 do CDC). É a nova transparência obrigatória nas relações do consumo (art. 30,33,34 e 48 do CDC), em que vige um novo dever de informar (art. 30,31,12,14,18 e 20 do CDC), 34 imputado a todos os fornecedores desta rede de contratos que forma alienação fiduciária.

30. Mas a preocupação com a confiança e a segurança das relações jurídicas se dá antes mesmo do surgimento do direito do consumidor, com suas normas de proteção dos vulneráveis. Desde o direito romano, 35 a proteção dos interessados legítimos das partes em relação a determinados contratos ou demais atos jurídicos celebrados, tinham na exigência de uma determinada solenidade, uma fórmula ou formalidade pré-estabelecida para sua celebração, a garantia para as partes interessadas de que aqueles atos ou contratos tinham se realizado nas circunstâncias e condições atestadas, confirmadas pelas respectivas formalidades. Estas ao mesmo tempo em tinham por finalidade dar certeza sobre a realização do ato, visavam ao interessado a certeza dos seus direitos.

31. Tais formalidades ocorriam como mais destaque, desde o direito romano, com relação ao direito de propriedade. Assim, por exemplo, a mancipatio romana, modo de aquisição da propriedade efetivada mediante solenidade em que se exigiam inúmeros requisitos (testemunhas, corpore, fórmula, etc.)36, função que adiante passa a ser cumprida pela exigência de registro público em relação a determinados negócios, com destaque em nosso direito, por destacada influência alemã, no sistema de transmissão de direitos reais sobre imóveis, cuja aquisição subordina-se à exigência de registro público37.

32.Os registros públicos, neste sentido, assumem modernamente, em nosso sistema, as funções de assegurar certeza e segurança quanto às condições e efeitos para cuja existência, validade ou eficácia seja o mesmo exigido como requisito. Este é o caso do registro do contrato de alienação fiduciária, como refere o art. 66, Parágrafo 1º 66 da Lei Federal nº4.728, de 14 de julho de 1965, com a redação determinada pelo Decreto-Lei nº911/69, que novamente reproduzimos:

“Art. 66. A alienação fiduciária em garantia transfere ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independentemente da tradição efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direto e depositário com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de acordo com a lei civil e penal. Parágrafo 1º A alienação fiduciária somente se prova por escrito e seu instrumento, público ou particular, qualquer que seja o seu valor, será obrigatoriamente arquivado, por cópia ou microfilme, no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do credor, sob pena de não valer contra terceiros, e conterá, além de outros dados, os seguintes: a) o total da dívida ou sua estimativa; b)o local e a data do pagamento; c) a taxa de juros, as comissões cuja cobrança for permitida e, eventualmente, a cláusula penal e a estipulação de correção monetária, com indicação dos índices aplicáveis; d) a descrição do bem objeto da alienação fiduciária e os elementos indispensáveis à sua indenização.(...)”.

33. A necessidade de registro para constituição da propriedade fiduciária, aliás, já era preconizada mesmo antes do Código Civil de 2002, pela doutrina especializada38, sendo expressamente previsto na Lei de Registros Públicos (Lei nº 6015/73), em seu artigo 129, 5º:

“Art. 129 – Estão sujeitos a registro, no Registro de Títulos e Documentos, para surtir efeitos em relação a terceiros (...); Parágrafo 5º - os contratos de compra e venda em prestações, com reserva de domínio ou não, qualquer que seja a forma de que se revistam, os de alienação ou de promessas de venda referentes a bens móveis e os de alienação fiduciária.”

34. A exigência do registro do contrato de alienação fiduciária de veículo e sua utilização em vista da proteção da confiança e segurança do consumidor já foi objeto de importantes decisões do Superior Tribunal de Justiça, conforme se refere:

“Alienação fiduciária. Veículo automotor. Necessidade de sua anotação no certificado de registro. 1. A alienação fiduciária, tratando-se de veículo automotor, há de ser consignada no respectivo certificado de registro, visando resguardar mais segurança às relações jurídicas. 2. Recurso improvido.” (STJ – Resp 140.873-DF, Rel. Min. José Delgado, j. 06/10/1997 p. DJU 15.12.1997 p. 66285).

35. Da mesma forma o STJ já decidiu indicando a existência do registro da alienação fiduciária como critério para determinação da boa-fé do adquirente do veículo:

“Administrativo. Civil. Veículo Automotor. Alienação Fiduciária. Registro de Títulos e Documentos. Anotação no Certificado de Propriedade. Lei 4.728/65 (art. 66, Parágrafo 1º). Lei 6.015/73 (art. 129 incs. 5º e 7º). Decreto-Lei 911/73. Súmulas 92/STJ e 489/STF. 1. A boa-fé do adquirente reclama a proteção surgente de indispensável registro da alienação fiduciária no Ofício de Títulos e Documentos. 2. À palma de necessário resguardo, igualmente, é indispensável o registro da alienação fiduciária no Certificado de Propriedade de Veículos automotor. 3. Precedentes jurisprudenciais. 4. Recurso provido.” (STJ – Resp 226856/PB; Rel. Min. Milton Pereira, j. 16/11/1999; p. DJU 21.02.2000, p. 99).

“REINTEGRAÇÃO DE POSSE. VEÍCULO AUTOMOTOR. ARRENDAMENTO MERCANTIL NÃO REGISTRADO. FALTA DE REGISTRO DO CONTRATO E DA TRANSFERÊNCIA DO BEM. EMBARGOS DE TERCEIRO. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. A inexistência de registro sobre a propriedade do veículo no DETRAN em nome da empresa de leasing e a falta de registro do respectivo contrato no Cartório de Títulos e Documentos afastam a sua oponibilidade a terceiro, considerado adquirente de boa-fé. Recurso não conhecido.” (Resp 242140/MG; Rel. Min. Castro Filho; j. 12/04/2005; p. DJU 02.05.2005 P. 335).

“ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. Tratando-se de veículo automotor, a alienação fiduciária só produz efeitos contra terceiros se anotada no respectivo certificado de registro. Recurso especial não conhecido.”(Resp 186095/SP; Rel. Min. Ari Pargendler; j. 03/10/2002; p.DJU 16.12.2002, p. 311)

36. O contrato de alienação fiduciária, que dá origem à propriedade fiduciária, e que era regulado originariamente em nosso sistema pelo disposto no artigo 66 da Lei nº 4.728/65, com a redação determinada pela Decreto-Lei nº 911/67, entretanto, passou com a vigência do Código Civil de 2002, a contar com disposições expressas desta lei, e que definiu, no seu artigo 1361, o conceito de propriedade fiduciária, ao referir no caput: “Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor.”

37. Contudo, foi o Parágrafo 1º do mesmo artigo 1.361 que diz respeito ao modo de constituição da propriedade e afirma: “Parágrafo 1º Constitui-se a propriedade fiduciária com o registro do contrato, celebrado por instrumento público ou particular, que lhe serve de título, no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor, ou, em se tratando de veículos, na repartição competente para o licenciamento, fazendo-se a anotação no certificado de registro.” (grifo nosso)

38. A redação do novo Código Civil em interpretação literal, parece excepcionar, criar exceção ou excluir do registro no Cartório do Registro de Títulos e Documentos, o referido registro de veículos alienados fiduciariamente. Esta atividade seia então indicada ao órgão (“repartição”) competente de licenciamento, fazendo-se a anotação no certificado de registro.

39.Em se tratando da aquisição de direito real de propriedade, o sistema jurídico brasileiro identifica em relação à propriedade de imóveis, a necessidade de registro na matrícula do bem, no Cartório de Registro de Imóveis. Trata-se, como já mencionamos, de procedimento de influência alemã, como bem identificado por Pontes Miranda. Uma vez que os alemães conhecem a abstração, a transferência da propriedade (modo) independe do título de propriedade, em outras palavras, a propriedade existente, válida e eficaz de forma abstrata, desprovida de uma causa válida (origem, título), o que coloca o adquirente e o vendedor em situação de risco.39 Assim, desenvolveram os alemães um sistema de registros e neste livro de registros (que é um só para evitar a duplicidade de registros ou a confusão do contratante de boa-fé) fica assegurada a necessária transparência e informação aos contratantes e a terceiros.

40. No sistema português, que herdamos, 40 há relação causal e por isso mais segurança para os parceiros contratuais, mas não na alienação fiduciária em garantia. Este negócio complexo acaba por inverter as posições subjetivas dos parceiros, incluindo terceiro financiador, e o consumidor acaba como alienante para o garante (instituição de crédito) e acaba depositário do próprio bem, que adquiriu de profissional, fornecedor de bens. Como ensina Konder, 41 a alienação fiduciária de veículos é exemplo de negócio jurídico indireto ou de estrutura negocial complexa com fins indiretos, pois os dois contratos diferentes (venda e alienação em fides) são conectados com fins indiretos, visam uma função distinta (garantia à instituição financeira) “daquela que é típica à estrutura escolhida” (compra e venda normal). A existência desta conexão e complexidade contratual fica clara, segundo o citado autor, pois há “pluralidade de negócios e cada um deles isoladamente considerado nada revela mas é de sua combinação ou do procedimento no seu conjunto que pode inferir-se com alguma segurança o fim indireto”.42

41. Efetivamente, o alerta da doutrina é muito importante para a solução desta consulta, pois a complexidade deste contrato de consumo, é montada apenas para facilitar à atuação dos fornecedores e das instituições de crédito e escapa à percepção do consumidor, que acredita-se verdadeiro “proprietário” do “veículo” que comprou, até o dia que furtado o bem “alienado” será chamado de “depositário infiel” e ameaçado de prisão por dívidas.43

42. Se olharmos a tomada de crédito isoladamente, a alienação fiduciária é apenas uma garantia da instituição financeira concentrada em um bem, se olharmos a compra e venda feita pelo consumidor frente ao fornecedor dos veículos, o negócio conexo de fidúcia como um todo (outra compra e venda) é mais do que garantia do Banco (muitas vezes do próprio grupo bancário do fornecedor de veículos), é estrutura negocial complexa para permitir o financiamento de grandes valores com segurança total e facilitação da colocação de veículos no mercado de consumo.

43. Aqui a discussão doutrinária, se a alienação fiduciária constitui um negócio unitário 44 ou dois negócios, um principal e um acessório de garantia (tese dualista) não importa, pois toda a doutrina é unânime quanto ao ponto que aqui nos interessas de serem estes contratos, que geralmente são de consumo, conexos, a aumentar a complexidade da estrutura negocial e a visualização dos fins atingidos pela conjunção dos contratos para o leigo e o terceiro, ainda mais se consumidor!

44. Concluindo, se a estrutura negocial da alienação fiduciária em garantia de veículos no Brasil é tão complexa e unilateralmente montada a favor apenas dos fornecedores, como pode o sistema estatal de registros privilegiar interpretação literal, interpretação restritiva de sua segurança que deixe desamparados os consumidores? Este sistema de registros foi criado justamente para dar segurança a ambas as partes e a terceiros (também futuros consumidores). Este sistema de registro único, em uma só repartição, como causa única, como título único de propriedade (alienada em pactum fiduciae) era talvez a parte mais equilibrada desta estrutura complexa, pois além de proteger o consumidor (que aqui ocupa a posição conexa de vendedor! Também protegia os terceiros futuros adquirentes, ao fornecer plena segurança sobre este forte gravame real (repita-se com conseqüências graves, inclusive a prisão por dívidas do consumidor! E evitar a multiplicidade da venda non domino no mercado de consumo (uma vez que a garantia da propriedade fiduciária acompanha o veículo e nascia com um registro único, com uma origem única possível!).

45. Aqui o Estado-Juiz deve intervir para restabelecer a segurança dos consumidores e impor interpretação conforme os valores constitucionais de proteção dos consumidores e não só dos Bancos e fornecedores de veículos! Em outras palavras, neste negócio complexo de consumo e de confiança (fides), que é a alienação fiduciária de veículos, a transmissão do direito real se dá pela conjunção de duas fases, título mais modo, duas vezes (primeira venda, segunda venda com alienação fiduciária). Ou seja, o sistema negocial já é complexo em excesso, as garantias dos fornecedores já são em excesso, logo, o contrato de consumo (mesmo que dois contratos de venda) deve ser acompanhado de apenas um registro! Este registro único deve ser o título único e o local de comunicação única de que a este veículo, colocado no mercado de consumo, pesa a propriedade reduzida (alienada fiduciariamente). Ou teremos no Brasil, novamente, uma interpretação das normas que lembra à insegurança da abstração alemã, sem os cuidados lá existentes de proteção da confiança e da boa-fé dos parceiros contratuais e de terceiros, com a validação comum da venda non domino de veículos, produtos de grande apelo e importância hoje para os consumidores!

46. Se os registros no Brasil foram mais largamente desenvolvidos com relação à propriedade imobiliária, também foram adotados na alienação fiduciária, não só para proteger as instituições financeiras, mas principalmente para proteger terceiros, futuros compradores e o próprio alienante, de um bem que já pode ter sua propriedade restrita. Como ensina Kloepfer, transparência atinge-se com informação. In-formar é dar “forma”, é perenizar, é clarear em registro, em escrito, em documento, em um banco de in-formações. Informação é um processo interativo (Vorgänge, Informationsvorgänge), que se denomina normalmente de comunicação (Kommunikation), a lembrar que sua finalidade social é tornar “comum”, tornar acessível aos contratantes e a outros terceiros, é clarear e perenizar a situação (posição jurídica) para maior harmonia e transparência no mercado.

47. Em outras palavras, o sistema brasileiro de registro conhece a necessidade de “dar forma”,45 de “(in)formar”, de tornar comum (co-munica-r) não apenas sobre o objeto de propriedade (imóveis ou móveis), mas também comunicar, formalizar, registrar, fixar e informar a “espécie” e a “qualidade” deste direito de propriedade. É este o caso da propriedade fiduciária, a teor do que dispõe o artigo 66 da Lei nº 4.728/65, com a redação determinada pelo Decreto-Lei nº 911/67.

48. A forma e o formalismo devem ser instrumentos a favor dos mais fracos e não contrário. É assim que o CDC conhece a dispensa do registro do pré-contrato para lhe garantir eficácia real  e possibilitar a execução específica (art. 48 do CDC combinado com o Art. 84 do CDC), em regra oposta a do Código Civil, que aqui aplica-se apenas subsidiariamente para relações de consumo. Afirma o art. 48 do CDC, a desnecessidade da forma (registro prévio do pré-contrato de consumo) para que nasce o vínculo entre consumidor e fornecedor (existência, validade e eficácia real do pré-contrato de consumo) e, em sentido contrário, afirma o parágrafo único do art. 463. do CC/2002, a necessidade para a eficácia plena dos contratos civis e comerciais da existência de registro prévio. As normas em antinomia aparente são:

Código de Defesa do Consumidor:

“Art. 48. As declarações de vontade constantes de escritos particulares, recibos e pré-contratos relativos às relações de consumo vinculam o fornecedor, ensejando inclusive execução específica, nos termos do art. 84 e parágrafos.” (grifos nossos)

“Art. 463. Concluído o contrato preliminar, com observância do disposto no artigo antecedente, e desde que dele não conste cláusula de arrependimento, qualquer das partes terá o direito de exigir a celebração do definitivo, assinando prazo à outra para que o efetive. Parágrafo único. O contrato preliminar deverá ser levado ao registro competente.”

49. Sem dúvida conhece o CDC a necessidade de informar os riscos do negócio e de fixar as formalidades que protegem o leigo-consumidor em seus negócios (art. 6, I, II e III do CDC). Informação é proteção do consumidor atual e futuro. Transparência é o objetivo da política nacional de proteção dos consumidores (art. 4, caput do CDC). Também o Código Civil de 2002 conhece a necessidade de segurança para os adquirentes, se bem que não se preocupe com os consumidores, uma vez que a eles é aplicado – como proteção qualificada e especial – o CDC, o novo Código Civil afirma: “Art. 1.417. Mediante promessa de compra e venda, em que senão pactuou arrependimento, celebrada por instrumento público ou particular, e registrada no Cartório de Registro de Imóveis, adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel.” (grifos nossos)

50. Resumindo, em se tratando de relação de consumo, envolvendo consumidor (sujeito constitucionalmente protegido), a interpretação deve ser a mais favorável ao consumidor nos contratos de consumo e conexos e às repartições estatais impõe-se o dever de proteger seus direitos constitucionais (eficácia direta da Constituição aos órgãos do Estado!).

51. Para a solução dos quesitos apresentados, parecenos muito importante destacar esta função individual e social, função pública dos registros, ainda mais quando referem-se majoritariamente a relações de consumo. Vimos, pois, que na sua origem, essência e função, o registro da alienação fiduciária de veículos no Brasil em Cartório do Registro de Títulos e Documentos como registro único cumpriu a função de requisito de existência, validade e eficácia real deste negócio complexo, equilibrando os interesses das partes e dos terceiros.  Um só registro, com validade e eficácia erga omnes, a proteger o negócio original e o conexo dando-lhe eficácia real, logo, nos três planos (existência, validade e eficácia).

52. Mas a questão, que diz respeito ao conteúdo (existência e validade) e a eficácia do registro prévio no Cartório do Registro de Títulos e Documentos tem sido diminuída, para uma questão de “exigibilidade”, “mera formalidade” e “custos”, apelando para atrativos argumentos da doutrina norte-americana, casuística e extremamente liberal, do sistema da commom law (Law and economics). Se, como vimos e estamos convencidos com os maiores mestres Brasileiros, trata-se de uma questão de existência e validade do contrato de alienação fiduciária, é providência constitutiva prévia e obrigatória para a validade plena, logo, afeta tanto o plano da validade do negócio e o da eficácia, mas esta outra corrente tenta diminuir a importância da questão, considerando-a simplesmente como importante no plano da eficácia, não da eficácia real da garantia (que é constitutiva, logo, do plano da existência que impede qualquer outra análise do que não existe juridicamente!), mas, menos ainda, apenas na eficácia de presunção de publicidade geral frente a terceiros(!?).

53. Em julgado recente isolado, o próprio e Superior Tribunal de Justiça acabou dando importância (pelo menos na ementa) a que esta exigência de registro do contrato de alienação fiduciária do veículo automotor seria providência que visaria “apenas” à presunção de publicidade (e a respectiva ineficácia do contrato) perante terceiro de boa-fé. 46 Uma visão talvez influenciada pelos anteriormente citados argumentos liberais da “Law and economics”. De qualquer maneira, se esta é, sem dúvida, uma das eficácias deste contrato complexo, não é a principal e sim o reflexo da mais importante! A tradição de nossa e. Corte Superior Civil, bastião da defesa dos consumidores e dos direitos fundamentais dos mais fracos, foi sempre justamente no sentido inverso, de destacar esta função pública não no seu sentido individual-subjetivo, mas sim social e de conjunto (harmonia, transparência e segurança no mercado) e se destacar a função privada ( e subjetiva) a sua mais importante, que é a do plano da existência!

54. Assim, o nosso alerta é o no sentido subliminar das argumentações que estão direcionando esta forma de pensar aparentemente restritiva de nossa e. Corte Superior Civil (repita-se, apenas na ementa) e que acabam por destruir ou descontruir as funções maiors deste registro único, que era a da constituição única (existência) a evitar a confusão dos consumidores, sejam os atuais, os futuros ou ainda terceiros, frente a contrato todo montado para privilegiar e garantir os fornecedores!

55. O fato é que a duplicidade de registros, do contrato de alienação fiduciária e do registro do veículo junto aos órgãos administrativos de trânsito, ao contrário de promover a proteção à confiança do consumidor-adquirente de veículos, dá causa à dúvida, á incerteza, e à insegurança quanto ao registro adequado para sua proteção! A dispensa da exigência do registro do contrato no Cartório de Títulos e Documentos pelo órgão de trânsito (portaria administrativa do DETRAN/RJ), contudo, sob o argumento de que o efeito do registro no Cartório restringe-se à realizar presunção de publicidade e eficácia do contrato a terceiros, em verdade compromete qualquer eficácia efetiva de proteção da boa-fé e da confiança dos consumidores em nosso mercado de negócios de veículos.

56. É nossa opinião, que a eficácia própria do registro, pública e privada, que inclui a proteção dos terceiros de boa-fé, mas visa sobretudo a proteção da confiança do consumidor, não se realiza plenamente como explicamos em caso de existência do dois registros independentes, que não se comunicam entre si, e mesmo dispensados um em relação ao outro, a criar grande confusão e insegurança no mercado de consumo! O registro do contrato de alienação fiduciária único no Cartório de Títulos e Documentos deve ser a prova única da eficácia constitutiva deste direito, ou se prejudicará ao consumidor com a duplicidade de registros. Por outro lado, o registro no Registro Nacional de Veículos Automotores – RENAVAM – pelos órgãos administrativos de trânsito não bastará para determinar a presunção de publicidade e a oponibilidade erga omnes. Aqui há que se evitar o dano a todos os consumidores, atuais, contratantes e terceiros e futuros, e criar clareza, transparência e segurança no mercado, retornando a um registro único constitutivo (plano da existência) e funcional (eficácia real e probatória)!

57. Ora, se encaminho o registro do veículo junto ao órgão administrativo de trânsito, mas não no Cartório de Títulos e Documentos não se alcança seja a propriedade fiduciária, seja a presunção de publicidade e proteção da boa-fé. Caso contrário, se registro o contrato de alienação fiduciária no Cartório, isto não é bastante para que se atenda a legislação de trânsito que exige o registro de veículos junto ao órgão administrativo de trânsito. Saliente-se que, segundo informações referidas pelo IRTDPJBrasil, o custo do registro do contrato de alienação fiduciária nos Cartórios de Títulos e Documentos do Estado do Rio de Janeiro oscila entre o mínimo de R$149,22 (Cento e quarenta e nove reais e vinte e dois centavos) e o máximo de R$274,32 (Duzentos e setenta e quatro reais e trinta e dois centavos). Trata-se de um custo para o consumidor, sem dúvida, mas um custo necessário e importante, visando garantir ao consumidor a segurança e clareza (transparência) quanto à realização do negócio, assim como seu conteúdo, sua oponibilidade perante terceiros e evitar futuras vendas non domino!

59. O sentido das normas que prevêem a competência dos órgãos registrais, em vista do dever constitucional e legal de proteção da confiança e da boa-fé dos consumidores, parece compreender o caráter de complementaridade entre os registros considerando a natureza complementar de seus efeitos frente aos interesses legítimos dos consumidores-adquirentes de contratos de alienação fiduciária de veículos. Esta proteção não apenas se dá entre consumidores-adquirentes de veículos por intermédio da alienação fiduciária em relação a outros terceiros, dando publicidade a ônus e gravames dos veículos em circulação, como penhoras em execuções comuns, trabalhistas e de alimentos, assim como constituem prova de fé pública sobre a existência do contrato e seu conteúdo, a ser oposta contra o próprio alienante fiduciário (em geral instituição financeira), assegurando a lealdade, transparência e boa-fé que informam a conduta das partes no contrato de consumo.

B)                         A PROTEÇÃO DA CONFIANÇA DO CONSUMIDOR ADQUIRENTE DO CONTRATO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA E AS EFICÁCIAS DOS REGISTROS DE VEÍCULOS PREVISTO NO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO E DO REGISTRO DE TÍTULOS E DOCUMENTOS.

60. O Registro de veículos realizado pelo órgão executivo de trânsito, como é o caso do DETRAN/RJ tem seu

procedimento, requisitos e efeitos estabelecidos pelo Código de Trânsito Brasileiro – CTB – (Lei Federal n9.503, de 23 de setembro de 1997.

            61. O artigo 12, inciso X, do Código de Trânsito Brasileiro estabelece sua competência para “normalizar os procedimentos sobre a aprendizagem, habilitação, expedição de documentos de condutores, e registro e licenciamento de veículos”. Da mesma forma a coordenação e acompanhamento destas atividades estão afetas no âmbito de suas competências aos Conselhos Estaduais de Trânsito, conforme o artigo 14, VIII do CTB. O Código de Trânsito Brasileiro ainda confere ao órgão máximo de trânsito da União o estabelecimento dos procedimentos de registro e licenciamento de veículos (artigo 19, VI), e a expedição dos respectivos certificados (artigo 19, VII), bem como organizar e manter o Registro Nacional de Veículos Automotores – RENAVAM (artigo 19, IX).

             62. Já os órgãos e trânsito estaduais contam dentre suas atribuições com as de “vistoriar, inspecionar quanto ás condições de segurança veicular, registrar, emplacar, selar a placa, e licenciar veículos, expedindo o Certificado de Registro e o Licenciamento Anual, mediante delegação do órgão federal competente” (artigo 22, III).

             63. Ao dispor sobre a disciplina do Registro de Veículos, o Código de Trânsito Brasileiro refere em seu artigo 120 que “Todo veículo automotor, elétrico, articulado, reboque ou semi-reboque, deve ser registrado perante o órgão executivo de trânsito do Estado ou do Distrito Federal, no Município de domicílio ou residência de seu proprietário, na forma da lei”.

             64. Já o artigo 123 do Código de Trânsito Brasileiro, ao referir as hipóteses em que é obrigatória a expedição de novo Certificado de Registro de Veículo, dispõe:

             “Art. 123. Será obrigatória a expedição de novo Certificado de Registro de Veículo quando:

             I – for transferida a propriedade;

             II – o proprietário mudar o Município de domicílio ou residência;

             III – for alterada qualquer característica do veículo;

             IV – houver mudança de categoria.

             Parágrafo 1º No caso de transferência de propriedade, prazo para o proprietário adotar as providências necessárias à efetivação da expedição do novo Certificado de Registro de Veículo é de trinta dias, sendo que nos demais casos as providências deverão ser imediatas.

             Parágrafo 2º No caso de transferência de domicílio ou residência no mesmo Município, o proprietário comunicará o novo endereço num prazo de trinta dias e aguardará o novo licenciamento para alterar o Certificado de Licenciamento Anual.

             Parágrafo 3º A expedição do novo certificado será comunicada ao órgão executivo de trânsito que expediu o anterior e ao RENAVAN.”

             65. Observe-se que não há no Código de Trânsito Brasileiro, regra sobre a transmissão de propriedade de veículo, senão a exigência de expedição de novo certificado de registro, quando for transferida a propriedade. Não se estabelece expressamente, contudo, quando esta transferência se efetiva, o que no caso do contrato de compra e venda do veículo se realiza pela celebração de contrato entre vendedor e adquirente, e que no caso do contrato de compra e venda do veículo se realiza pela celebração de contrato entre vendedor e adquirente, e que no caso da aquisição por intermédio de contrato de alienação fiduciária, poderá perfeitamente se efetivar por intermédio do registro do título no Cartório de Títulos e Documentos.

             66. Isto porque, dos próprios requisitos exigidos pelo Código de Trânsito para expedição do Certificado de Registro de Veículo demonstram seu sentido e finalidade, vinculados a proteção e regulação de trânsito, como a segurança ou o controle da emissão de poluentes e ruídos. Neste sentido, o artigo 124 do CTB refere que para realização de novo Certificado de Registro de Veículo serão exigidos os seguintes documentos: “I – Certificado de Registro de Veículo anterior; II – Certificado de Licenciamento Anual; III – Comprovante de transferência de propriedade, quando for o caso, conforme modelo e normas estabelecidas pelo CONTRAN; IV – Certificado de Segurança Veicular e de emissão de poluentes e ruído, quando houver adaptação ou alteração de características do veículo; V – Comprovante de procedência e justificativa da propriedade dos componentes e agregados adaptados ou montados no veículo, quando houver alteração das características originais de fábrica; VI – Autorização do Ministério das Relações Exteriores, no caso de veículo da categoria de missões diplomáticas, de repartições consulares de carreira, de representações de organismos internacionais e de seus integrantes; VII – Certidão negativa de roubo ou furto de veículo, expedida no Município do registro anterior, que poderá ser substituída por informação do RENAVAN; VIII – Comprovante de quitação de débitos relativos a tributos, encargos e multas de trânsito vinculados ao veículo, independentemente da responsabilidade pelas infrações cometidas; IX – Revogado; X – Comprovante relativo ao cumprimento do disposto no art. 98, quando houver alteração nas características originais do veículo que afetem a emissão de poluentes e ruído; XI – Comprovante de aprovação de inserção veicular e de poluentes e ruído, quando for o caso, conforme regulamentações do CONTRAN e do CONAMA.”

             67. Não há, deste modo, como se desconhecer a distinção entre o registro previsto no Código de Trânsito Brasileiro e o registro do contrato de alienação fiduciária do veículo, de competência do Cartório de Títulos e Documentos. As finalidades dos registros em questão são distintas. No que se refere ao registro de veículo automotor no RENAVAM, o objetivo básico diz respeito ao uso do veículo em vista das regras de trânsito e não com a presunção de publicidade, oponibilidade erga omnes e mesmo a aquisição/transferência da propriedade fiduciária do veículo, caso do registro no Cartório de Registro de Títulos e Documentos. Para concluir, vejamos novamente a necessária aplicação coerente das normas aplicáveis aos casos de consumo.

             II – DIÁLOGO DAS FONTES ENTRE O CÓDIGO CIVIL, O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E A LEGISLAÇÃO ESPECIAL QUE DISPÕE SOBRE A ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA, NO QUE SE REFERE À EXIGÊNCIA DE REGISTRO DO CONTRATO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA E SUA COMPATIBILIDADE COM A PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR CONSTITUCIONALMENTE ASSEGURADA

                68. Como vimos anteriormente, não é possível a luza dos mandamentos constitucionais que o Código Civil de 2002, ao estabelecer em seu artigo 1361, Parágrafo 1º que “a propriedade fiduciária constitui-se com o registro do contrato, celebrado por instrumento público ou particular, que lhe serve de título, no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor, ou, em se tratando de veículos, na repartição competente para o licenciamento, fazendo-se a anotação no certificado de registro” seja interpretado isoladamente, sem o necessário diálogo com outras fontes aplicáveis à espécie, 47 existindo uma fonte de origem constitucional (Art. 48 dos ADCT-CR/88), como é caso do Código de Defesa do Consumidor! Em relação aos contratos de alienação fiduciária celebrados por consumidores-adquirentes, aplica-se com PRIORIDADE a lei especial, o CDC. Assim afirma a própria legislação geral, o CC/2002, que expressamente, desde 2004, tendo em vista do disposto no artigo 1368-A (As demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina específica das respectivas leis especiais, somente se aplicando as disposições deste Código naquilo que não for incompatível com a legislação especial) assegura preferência à legislação especial (leia-se CDC para relações de consumo) no que pertinente à alienação fiduciária. É o diálogo das fontes!

A)      DIÁLOGO DAS FONTES E RESOLUÇÃO DOS CONFLITOS DE LEIS A PARTIR DAS REGRAS E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E AS DIFERENTES NORMAS EM MATÉRIA DE PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA DE VEÍCULOS E PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR-ADQUIRENTE.

69. A pluralidade de leis é o grande desafio do aplicador da lei contemporâneo. A expressão usada normalmente era a de “conflitos de leis no tempo” 48, a significar que haveria uma ‘colisão’ ou conflito entre os campos de aplicação destas leis. Assim, por exemplo, uma lei anterior, como o Código de Defesa do Consumidor de 1990 e uma lei posterior, como o novo Código Civil Brasileiro de 2002, estariam em ‘conflito’, daí a necessária ‘solução’ do ‘conflito’ através da prevalência de uma lei sobre a outra e a conseqüente exclusão da outra do sistema (abrogação, derrogação, revogação).

            70. Em outras palavras, nesta visão ‘perfeita’ ou ‘moderna’, teríamos a “Tese” (lei antiga), a “antítese” (lei nova) e a conseqüente síntese (a revogação), a trazer clareza e certeza ao sistema (jurídico). Os critérios para resolver os conflitos de leis no tempo seriam assim apenas três: anterioridade, especialidade e hierarquia, a priorizar-se, segundo Bobbio, a hierarquia. 49 A doutrina atualizada, porém, está a procura hoje mais da harmonia e da coordenação entre as normas do ordenamento jurídico (concebido como sistema), 50 do que da exclusão. É a denominada “coerência derivada ou restaurada” (“cohérence dérivée ou restaurée”), 51 que em um momento posterior a decodificação, a tópica e a microrecodificação, 52 procura uma eficiência não só hieráquica, 53 mas funcional 54 do sistema plural e complexo de nosso direito contemporâneo, 55 a evitar a ‘antinomia’, a ‘incompatibilidade’ ou a ‘não-coerência’. 56

            71. O grande mestre de Heidelberg, Erik Jayme, propõe então a convivência de uma segunda solução ao lado da tradicional: a coordenação destas fontes. 57 Uma coordenação flexível e útil (effet utile) das normas em conflito no sistema a fim de restabelecer a sua coerência, isto é, uma mudança de paradigma: da retirada simples (revogação) de uma das normas em conflito do sistema jurídico (ou do ‘monólogo’ de uma só norma possível à “comunicar” a solução justa, à convivência destas normas, ao diálogo das normas para alcançar a sua “ratio”, a finalidade “narrada” ou “comunicada” em ambas.

             72.A belíssima expressão de Erik Jayme, relembra o necessário ‘diálogo das fontes’ (“dialogue de sources”), 58 a permitir a permitir a aplicação simultânea, coerente e coordenada das  plurímas fontes legislativas convergentes. 59  ‘Diálogo’ porque há influências recíprocas, ‘diálogo’ porque há aplicação conjunta das duas normas ao mesmo tempo e ao mesmo caso, seja complementariamente, 60 seja subsidiariamente, 61 seja permitindo a opção voluntária das partes sobre a fonte prevalente (especialmente em matéria de convenções internacionais e leis modelos) 62 ou mesmo permitindo uma opção por uma das leis em conflito abstrato. 63 Uma solução flexível e aberta, de interpenetração ou mesmo a solução mais favorável aos mais fraco de relação (tratamento diferente dos diferentes).

              73. Os juristas reunidos na III Jornada de Direito Civil, organizada pelo STJ, em Brasília, em 2004, já afirmaram o diálogo das fontes: “Art. 422 – Com o advento do Código Civil de 2002, houve forte aproximação principiológica entre esse Código e o Código de Defesa do Consumidor no que respeita à regulação contratual, eis que ambos são incorporadores de uma nova teoria geral dos contratos. “Mister, pois, uma visão de complementariedade entre estas duas fontes, a especial de consumo prevalecendo, mas a geral civil a complementa-la, “no que couber”, somente assim criaremos uma nova concepção de contrato, iluminada pelos valores constitucionais (consubstanciados no CDC) e pelas belas cláusulas gerais (do CC/2002). Esta noção é, como vimos, muito importante para a solução de nosso caso. Vejamos a aplicação desta teoria à questão estudada.

B)      EXIGÊNCIA DO REGISTRO DO CONTRATO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DO VEÍCULO COMO RESULTADO DO INDISPENSÁVEL PARA PROTEÇÃO DA CONFIANÇA DOS CONSUMIDORES NO REGISTRO JUNTO AO ÓRGÃO EXECUTIVO DE TRÂNSITO (DETRANS).

74. A propriedade fiduciária, e em especial a propriedade fiduciária de veículos é objeto de uma série de leis, gerais e especiais, do Código Civil do Decreto-Lei nº 911/67, do Código de Trânsito Brasileiro e da Lei de Registros Públicos. E junto destas leis, no que se refere aos contratos de consumo que envolvam alienação fiduciária de veículos, a eficácia do direito fundamental de defesa do consumidor e seu respectivo dever constitucional do Estado – e, portanto dos órgãos estatais – de proteção do consumidor, fazendo incidir sobre a questão também os princípios da confiança, da boa-fé e da transparência consagrados no Código de Defesa do Consumidor.

 75. Na questão em exame, o grande objetivo a ser alcançado pela interpretação e aplicação combinada das leis é a proteção da confiança dos consumidores do contrato de alienação fiduciária de veículos. E esta confiança, a boa-fé dos consumidores e terceiros, sem dúvida, estão resguardadas pela exigência do registro do contrato de alienação fiduciária de veículos no Cartório de Títulos e Documentos.

            76. Não faltam argumentos de natureza diversa para impugnar a interpretação literal do artigo 1361, Parágrafo 1º do Código Civil, assim como, no caso presente, a Portaria do DETRAN/RJ, que dispensa o registro do contrato de alienação fiduciária no Cartório de Títulos e Documentos como requisito para registro dos veículos junto ao órgão executivo de trânsito, no Registro Nacional de Veículos Automotores – RENAVAM.

77. Poderia se indicar a inconstitucionalidade da norma administrativa do DETRAN/RJ em vista da ofensa á norma do artigo 22, inciso XXV, da Constituição da República, que estabelece a competência privativa da União legislar sobre registros públicos. Da mesma forma, ao conferir-se ao DETRAN a faculdade de exercer serviço registral, seria destacado o fato de que norma deste conteúdo vulnera-se o artigo 236, da Constituição que estabelece: “Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público. Parágrafo 1º - Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário. Parágrafo 2º - Lei Federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro. Parágrafo 3º - O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses.”

78. Ou ainda, trazer o entendimento da doutrina especializada, de que a redação do artigo 1361, parágrafo 1º do Código Civil decorre de equívoco de redação legislativa, conforme sustenta Joel Dias Figueira, para quem a conjunção “ou” utilizada inadequadamente na redação do dispositivo “resulta de lamentável equívoco ou erro de digitação que passou desapercebido por todos, durante as intermináveis fases da revisão”. 64 Ou ainda, como refere Luiz Edson Fachin, para quem se constitui a propriedade fiduciária com o assentamento do contrato, celebrado por instrumento público ou particular, apto a lhe servir de título, no registro de títulos e documentos do domicílio do devedor”65. Ensina, então, que “na hipótese de se tratar de veículos, o mesmo procedimento deve ser levado a efeito na repartição competente para o licenciamento, fazendo-se a apostila no certificado de registro. O gravame encontrar-se-á, também, no certificado do registro de propriedade do veículo.”66

79. Todavia, a finalidade básica do registro, seja no Cartório de Títulos e Documentos, seja no órgão executivo de trânsito (DETRAN), como vimos, é a proteção da confiança e da boa-fé dos consumidores adquirentes (atuais e futuros) de veículo mediante contrato de alienação fiduciária. Assim, por todo o exposto, a interpretação constitucional mais adequada, sem dúvida, é a de que consideram o registro do contrato no Cartório de Títulos e Documentos e o registro junto ao órgão executivo de trânsito como providências complementares (diálogo de complementaridade), que não podem se excluir, de modo a evitar a confusão do consumidor quanto ao procedimento a adotar no registro do contrato ou não, assim como a exigência de uma conduta diligente, conforme a boa-fé por parte do vendedor (fornecedor) do veículo perante o consumidor-adquirente e terceiros.

80. Isto sem falar, que esta conduta diligente também é exigida dos órgãos do Estado, que não devem visar apenas criar receitas próprias, aumenta-las ou apenas – influenciados por argumentos micro-econômicos de segunda mão – “fazer economia” para os primeiros consumidores, ao reduzir para estes os custos e prejudicar a todo o mercado e sociedade aumentando a falha do mercado (informação e transparência)e a vulnerabilidade dos consumidores todos (inclusive destes teoricamente beneficiados com a redução parcial dos custos). Imagine-se a situação, pouco provável, mas possível que o consumidor esteja inadimplente, não seja mais possível sua prisão por dívidas e a conduta das instituições modifique-se para passar a empresas terceiras a propriedade fiduciária, com autorização futura em contrato.

81.Assim, a prevalecer esta interpretação restritiva do CC/2002, sem o diálogo necessário com o CDC, em breve poderão os consumidores (aqueles que se beneficiaram de uma redução de custo de 200 reais!) se ver frente a uma venda do “domino” fiduciante a “novo domino” empresa (terceira, do mesmo grupo empresarial, de cobrança de dívidas ou especialmente montada para este novo mercado, nova linha de serviços de cobrança (new bussiness) criados pela falha de segurança fundada na dúvida jurídica (resultante desta interpretação sem diálogo e sem contexto do CC/2002). Uma venda das instituições financeiras à empresas, conscientemente só registrada no cartório, pois aos Bancos-verdadeiros-proprietários não interessa o registro no DETRAN/RJ ou qualquer órgão semelhante e sim a propriedade, que já é deles, pela existência do primeiro registro! Esta sim, seria uma situação insustentável, pois até o Direito protegeria este novo “terceiro adquirente de boa-fé” (empresa-profissional) e não o consumidor original e seu registro no DETRAN-RJ!

             82. O artigo 1361, Parágrafo 1º do Código Civil, neste sentido, em interpretação que seja adequada ao seu objetivo constitucional de proteção do consumidor deve ter esta marca de complementaridade, identificando-se, para efeito de constituição da propriedade fiduciária, e para a presunção de sua publicidade com eficácia erga omnes, que seja exigido o registro do contrato de alienação fiduciária para veículos, registro único e no órgão competente para tal, o Cartório, como condição para o registro do veículo no órgão executivo de trânsito e seus congêneres.

83. Esta é a única interpretação útil da norma do artigo 1361, Parágrafo 1º do Código Civil, indicando a necessidade do registro de veículo automotor como requisito para constituição do direito e a providência complementar de registro e anotação, para efeito de emissão do Certificado de Registro de Veículo Automotor, junto ao órgão executivo de trânsito, uma vez que neste momento anterior à lide (mesmo no caso da aquisição de veículos por pessoas jurídicas ex vi art. 2º, caput, parágrafo único do art. 2º e art. 29 do CDC) não se pode saber com certeza se o parceiro-contratual das instituições financeiras é um consumidor ou será equiparado à consumidor pelo CDC!

            84. Do contrário, a existência de dois registros distintos, com eficácias diferentes, gera circunstância de incerteza e insegurança do consumidor, uma vez que a ausência do registro do contrato de alienação fiduciária no Registro de Títulos e Documentos abre a possibilidade da venda a non domino, à fraude das expectativas legítimas do consumidor.

            85. Em resumo, a interpretação do artigo 1361, parágrafo 1º do Código Civil, deste modo, deve necessariamente considerar as normas de registros públicos (artigo 129 da Lei de Registros Públicos), o dever de transparência e boa-fé do Código de Defesa do Consumidor (artigo 4º, do CDC), assim como as normas constitucionais sobre o tema.

86. O dever fundamental do Estado de defesa do consumidor (art. 5º, XXXII, CR/88), combina-se com o disposto no artigo 236 da Constituição que estabelece função privativa dos registradores delegados pelo Poder Público, a realização dos atos de registro (como no caso do contrato de alienação fiduciária), estabelecendo a necessidade de interpretação da norma do Código Civil considerando a complementaridade entre os registros, não a mútua exclusão, sob pena de alcançar-se uma menor proteção à confiança dos consumidores.

87. Dito isto, passamos a responder sucintamente os quesitos formulados:

A) Sim. Em abstrato, o Código de Defesa do Consumidor aplica-se ás alienações fiduciárias de veículos. E em concreto, uma vez que o contrato de alienação fiduciária de veículos é espécie contratual, em grande parte das vezes, concluída com consumidores (art. 2º, caput do CDC e consumidores equiparados, segundo o parágrafo único do art. 2º e art. 29 do CDC), o contrato pode ser de consumo, se há a presença do consumidor in concreto (a presunção é esta, para pessoas físicas e também para pessoas jurídicas, justamente porque antes – no momento do registro – não se sabe a destinação final do bem e se haverá equiparação, por vulnerabilidade provada in concreto). Assim, aplica-se o Código de Defesa do Consumidor em diálogo com o Código Civil e ajudando a interpretar esta lei geral e subsidiária, e aplica-se a própria Constituição, em seu artigo 5º, inciso XXXII, determinando o atendimento na formação e registro destes contratos, a fornecedores e ao Estado, os deveres de assegurada transparência, boa-fé e confiança.

Nossa conclusão geral foi justamente que esta proteção constitucional do consumidor deve levar á exigibilidade do registro do contrato de alienação fiduciária de coisa móvel no cartório de títulos e documentos, pois este é o registro único e geral, utilizado e conhecido por todas as partes envolvidas e a sociedade geral, sendo a interpretação a favor da duplicidade de registros, prejudicial aos consumidores, à transparência do mercado e a harmonia (e segurança) das relações.

            B)Não, se interpretado em diálogo com a lei especial de proteção dos consumidores, o CDC. Considerando a multiplicidade de registros (o registro administrativo do DETRAN e o Registro Civil de Títulos e Documentos), uma interpretação útil da norma do artigo 1361, parágrafo 1º do Código Civil, em diálogo de fontes com outras leis, como o Código de Defesa do Consumidor, a Lei dos Registros Públicos, e a Lei nº 4.728/65, com a redação determinada pelo Decreto-Lei nº911/67, deve evitar a confusão da multiplicidade de registros ao consumidor, interpretando-se pela necessidade do registro do contrato de alienação fiduciária de veículo no Cartório de Títulos e Documentos como providência prévia ao registro no órgão administrativo DETRAN, que garante a certeza e segurança do consumidor quanto à existência e conteúdo do contrato realizado com o alienante fiduciário (em regra, instituição financeira), assim como a proteção em relação a terceiros e a possibilidade de venda a non domino. O formalismo aqui do registro único, mesmo havendo custo para os consumidores é a favor dos direitos e interesses legítimos de segurança e informação dos consumidores em contratos complexos como a alienação fiduciária, conexos a compra de cosumo.

            C)   Sim. Em vista do que dispõe o artigo 1368-A, do Código Civil, o âmbito de aplicação das disposições relativas à propriedade fiduciária nele previstas possuem caráter subsidiário, razão pela qual devem ser interpretadas e aplicadas em diálogo com outras normas que disponham sobre a alienação fiduciária, a proteção do consumidor, assim como sobre registros públicos. Concluímos aqui pelo necessário diálogo das fontes e aplicação subsidiária do Código Civil em matéria de propriedade fiduciária (art. 1868-a, do cc/2002). A ordem pública constitucional de proteção do consumidor, que destaca a proteção da confiança dos consumidores nas relações que participam no mercado de consumo, tem no registro do contrato de alienação fiduciária junto aos serviços públicos delegados de registro uma projeção da garantia constitucional de proteção deste sujeito vulnerável.

              D)Sim. A dispensa do registro do contrato de alienação fiduciária de veículos no Registro Civil de Títulos e Documentos, considerando que tais contratos são celebrados sobretudo por consumidores e se destinam a permitir a aquisição a crédito, de produtos de alto valor, compromete a segurança do consumidor-adquirente de veículo quanto aos riscos sobre a validade e eficácia do contrato. A multiplicidade de registros, de modo não complementar (o registro administrativo dispensando a providência prévia do registro público), gera confusão, incerteza e insegurança aos consumidores, afetando o dever de proteção da confiança dos consumidores pelo Estado, que é um dos destinatários dos deveres que emergem da ordem pública constitucional de proteção do consumidor.

Concluímos aqui que a multiplicidade de registros, com eficácias diversas gera confusão e desconhecimento dos consumidores de veículos por intermédio da alienação fiduciária, o que se agrava com a regulação do tema por intermédio de norma administrativa que regule emissão do registro e licenciamento e respectiva anotação dos registros administrativos de trânsito. No campo da existência do vínculo com eficácia real, em mercado de grande concorrência e utilização por consumidor, a possibilidade de duplicidade de registros, independentes um do outro, acaba por agravar a falha de informação do consumidor e sua vulnerabilidade. Há necessidade de segurança, transparência e formalidade única eficaz na proteção do sujeito leigo e vulnerável.

                 E) Não. A norma administrativa veiculada pela Portaria PRES. DETRAN/RJ nº 2954, de 17 de outubro de 2002, ao dispensar a apresentação do registro do contrato de alienação fiduciária de veículos para efeito de emitir o licenciamento e proceder a anotação no registro do veículo, não encontra respaldo legal, por violar competência constitucional para legislar sobre registros públicos (art. 22, inciso XXV, da CR/88), assim como com o dever de transparência e boa-fé previsto no Código de Defesa do Consumidor, considerando que o  Estado é um dos destinatários do dever de proteção do consumidor.

 

Os autores:  

Cláudia Lima Marques – OAB/RS nº 25.593, é Professora Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Doutora em Direito (Univ. de Heidelberg/Alemanha); Mestre em Direito (Univ. de Tubingen/Alemanha); especialista em Direito (Univ. de Saarbrucken/Alemanha)

 Bruno Miragem – OAB/RS nº 51.573, é Professor convidado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Doutorando e Mestre em Direito (UFRGS); especialista em Direito Internacional e em Direito Civil (UFRGS)

 

Fonte: IRTDPJMinas - 07/01/2008
 

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