Alienação fiduciária e leilões negativos: há necessidade de averbação dessa circunstância no Registro de Imóveis?

 

Luciano Lopes Passarelli*

No universo de pesquisa a que tive acesso, não encontrei nenhum autor nem jurisprudência tratando especificamente dessa questão, razão pela qual resolvi trazê-la ao Boletim Eletrônico em ordem a suscitar o debate, de modo que os colegas estudiosos do registro imobiliário possam também contribuir, apresentando seus argumentos e colacionando autores ou decisões judiciais que já trataram do tema.

Vejam: pela alienação fiduciária o devedor-fiduciante transmite ao credor-fiduciário a propriedade do imóvel, com o escopo de garantia, conforme consta do artigo 22 da Lei 9.514/97. Assim, o credor efetivamente adquire o imóvel, que ingressa no seu patrimônio, mas o faz sob condição resolutiva: adimplindo o devedor a dívida e seus encargos, retorna-se ao status quo ante, resolvendo-se a alienação[1]. Trata-se então de propriedade resolúvel, como estabelece o artigo 1.361 do Código Civil, em texto plenamente aplicável também à alienação fiduciária de bem imóvel.

Mas se o devedor restar inadimplente, após constituído em mora e observado os procedimentos do artigo 26 da Lei 9.514/97, consolida-se a propriedade na pessoa do credor-fiduciário, ato que se perfaz por averbação, à vista do pagamento do imposto de transmissão "inter vivos" e do laudêmio, se houver[2].

A expressão "consolidação da propriedade" pode levar o leitor desavisado a achar que agora o credor-fiduciário é proprietário pleno do imóvel, reunindo em sua pessoa os clássicos poderes inerentes à propriedade, podendo então usar, gozar e dispor da coisa, e reavê-la de quem injustamente a detenha ou possua, como expressa o artigo 1.228, caput, do Código Civil[3]. Mas ainda não! O novel proprietário não pode usar ou dispor da coisa como melhor lhe aprouver, porque deve dar ao imóvel no curto prazo de trinta dias o destino preconizado no artigo 27 da Lei 9.514/97: promover leilão público para venda do imóvel. Sendo assim, seus poderes de proprietário nem sequer se aproximam da extensão daqueles referidos no artigo 1.228 do Código Civil.

Deve o proprietário dito "consolidado" realizar dois leilões: no primeiro obrigatoriamente deverá haver lance igual ou superior ao valor do imóvel para fins de leilão, estabelecido pelas partes quando da contratação da alienação fiduciária, nos termos do artigo 24, VI, da Lei 9.514/97. Se não houver lance nessas condições, deverá o proprietário realizar um segundo leilão. Neste, o maior lance oferecido poderá ser inferior ao valor da avaliação do imóvel, mas terá que alcançar no mínimo o valor da dívida e demais consectários constantes do artigo 27, parágrafo segundo, da lei sob comento.

Se nenhum lance cumprir tal requisito, ou se simplesmente não houver lance, nos termos do parágrafo quinto do artigo 27, a conseqüência será a extinção da dívida, ou seja, o credor não poderá prosseguir perseguindo eventual saldo pelas vias ordinárias, diferentemente do regramento geral da propriedade fiduciária constante do artigo 1.366 do Código Civil, e nesse momento, finalmente, o credor torna-se proprietário pleno do imóvel! Entendo que não há que se falar aqui em aplicação do artigo 1.365 do Código Civil porque, no regime da Lei 9.514/97, o credor tem a obrigação legal de realizar dois leilões. "Contrario sensu", não está obrigado a realizar três ou mais leilões, até que finalmente o imóvel seja vendido. Além disso, a "ratio legis" aqui é a de exonerar o devedor, extinguindo-se a dívida. A se admitir a incidência do artigo 1.365 do Código Civil teríamos que admitir também a incidência do artigo 1.366, podendo então o credor prosseguir em execução ordinária contra o comprador, o que parece contrariar o sistema da Lei 9.514/97. Se não houve comprador interessado ou se nenhum ofereceu lance nas condições exigidas pelo artigo 27, a consolidação da propriedade, por assim dizer, atinge seu clímax.

Agora sim, segundo penso e ressalvadas as posições em sentido diverso, poderá usar, gozar e dispor da coisa livremente.

A pergunta, então, é se os leilões negativos devem ser publicizados no Registro de Imóveis.

Tenho para mim que a resposta a essa questão só pode ser afirmativa. Enquanto está estampada na matrícula do imóvel apenas a averbação da consolidação da propriedade, o que o ato registral está a revelar é que o proprietário deverá cumprir sua obrigação legal de levar o imóvel à venda em leilão. Não pode, então, dele dispor de forma diferente desta. Só com a averbação dos Autos de Leilão negativos é que o imóvel ficará livre para o proprietário dele dispor como melhor lhe aprouver.

Antes da averbação dos autos de leilão negativo, portanto, não pode o registrador recepcionar no álbum registral um outro negócio jurídico qualquer, como eventual venda direta, sem realização de leilão. Daí porque a averbação dos autos de leilão negativos é condição inafastável para que o credor-proprietário possa dispor do imóvel.

Esta é minha interpretação dos preceptivos legais citados, a qual submeto a apreciação dos leitores desse boletim, para as considerações e críticas que entenderem pertinentes.

Notas

[1] Artigo 25, lei 9.514/97.

[2] Artigo 26, parágrafo 7º, lei 9.514/97.

[3] Claro, lembrando que a propriedade deve cumprir sua função social (CF/88, artigo 5º, inciso XXIII).

* Luciano Lopes Passarelli é Oficial de Registro de Imóveis de Batatais, SP.

 

Fonte: Boletim Eletrônico do IRIB N. 3423 - 04/09/2008 
 

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