A Emenda Constitucional
45/2004 atribuiu ao Superior Tribunal de Justiça a competência
originária para homologar sentenças estrangeiras e conceder exequatur às
cartas rogatórias. A Lei de Introdução ao Código Civil — infelizmente
hoje denominada de Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro,
LINDB (por efeito da Lei 12.376/2010) —, em seu artigo 15, alínea “e”,
declara que a “sentença proferida no estrangeiro” só será executada no
Brasil quando reunir diversos requisitos, entre esses a homologação pelo
Supremo Tribunal Federal.
É evidente que prevalece a superveniente alteração ao texto magno e essa
competência não mais é exercida pelo STF e sim pelo STJ. A mudança de
plexo jurisdicional para a concessão de eficácia a atos judiciais
estrangeiros implicou alguma mudança na interpretação de conceitos,
princípios e normas do Direito Internacional Privado, conquanto ainda se
perceba o respeito do STJ pelas balizas centenárias do STF nesse campo.
Essa “nova fase” do Direito Internacional Privado no Brasil apresenta
diversos pontos de interesse e um deles é especialmente curioso: a
homologação de sentenças estrangeiras nas ações de estado. A Lei no
12.036/2009 revogou o parágrafo único do artigo 15 da LINDB, que possuía
o seguinte conteúdo: “Não dependem de homologação as sentenças meramente
declaratórias do estado das pessoas”.
Segundo a doutrina especializada, em comentário anterior à mudança
legislativa, reconhecia-se que, em quase todos os países, as sentenças
estrangeiras são executadas mediante um procedimento prévio de
delibação, no qual se examinam questões como:
a) a competência da autoridade que proferiu a decisão no estrangeiro;
b) a existência de capítulo ou ordem no ato judicial que contraste com a
ordem pública internacional;
c) a regularidade dos atos de participação do réu no procedimento,
especialmente a citação. Deixa-se de lado o mérito do julgado, conquanto
haja uma zona cinzenta n’algumas hipóteses, mormente quando se discute o
problema da ordem pública, e passa-se a uma delibatio+nis, ou seja,
“tirar, colher um pouco de alguma coisa; tocar de leve, saborear,
provar, no sentido de experimentar, examinar, verificar”, o que redunda
em se tangenciar “de leve apenas em seus requisitos externos, examinando
sua legitimidade, sem entrar no fundo, ou mérito, do julgado”.
[1] De modo específico sobre o agora revogado parágrafo único do artigo
15 da LINDB, a previsão normativa era louvada por dizer “claramente” que
as sentenças meramente declaratórias de estado das pessoas não careciam
de homologação. Indagava-se: “Delibação para quê, se não pode haver
qualquer espécie de execução?”
[2] Essa posição favorável ao parágrafo único do artigo 15 era
minoritária. Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda considerava essa
regra uma “monstruosidade”, um caso típico de “ineptia legis”. Houve
copiosos estudos sobre o tema, com a defesa da superveniente revogação
dessa regra pela Constituição de 1946, em cujo artigo 101, inciso I,
alínea “g”, havia referência genérica à “homologação de sentenças
estrangeiras”.
[3] A polêmica doutrinária persistiu até a vigência da Constituição de
1988, com Maria Helena Diniz e, mais recentemente, José Renato Nalini a
defenderem a dispensabilidade do juízo homologatório nas ações de
estado.
[4] Com a revogação pura e simples da exigência legal, ter-se-ia como
consequência o estabelecimento da exigência irrestrita de homologação
das sentenças, sejam ou não meramente declaratórias do estado das
pessoas. De fato, a Resolução nº 9 do STJ, de 4 de maio de 2005, que
dispõe, em caráter transitório, sobre competência acrescida ao Superior
Tribunal de Justiça pela Emenda Constitucional 45/2004, em seu artigo
5o, antes da vigência da Lei 12.036/2009, não reproduziu o parágrafo
único do artigo 15 da Lei de Introdução ao Código Civil (antiga
denominação da LINDB).
A jurisprudência do STJ, em diversas ocasiões, tem-se orientado pela
máxima competência para homologar as sentenças estrangeiras, ainda que
se enquadrassem no conceito de meramente declaratórias do estado das
pessoas: a) é homologável sentença que decretou divórcio por mútuo
consentimento;
[5] b) é também lícita a “homologação de pedido de divórcio consensual
realizado no Japão, o qual é dirigido à autoridade administrativa
competente. Nesse caso, não há sentença, mas certidão de deferimento de
Registro de divórcio, passível de homologação pelo Superior Tribunal de
Justiça”
[6]; c) o ato de mudança do Registro Civil, com o acréscimo do nome de
família do padrasto e exclusão do patronímico do genitor biológico é
susceptível de homologação
[7]; d) “são homologáveis sentenças estrangeiras que dispõem sobre
guarda de menor ou de alimentos, muito embora se tratem de sentenças
sujeitas a revisão, em caso de modificação do estado de fato”
[8]. No entanto, a homologação de certidão de casamento não pode ser
acolhida no STJ, porque esse ato não se insere no conceito de “sentença
estrangeira”, muito menos de “provimentos não judiciais que, pela lei
brasileira, tenham natureza de sentença”.
[9] E, antes da Lei 2.036/2009, em alguns acórdãos, o STJ reconheceu a
eficácia do parágrafo único do artigo 15 da LINDB.
[10] Duas situações, no entanto, ainda permanecem aptas a gerar
controvérsias. A primeira foi examinada pela Corte Especial do STJ,
tendo como relator o ministro Humberto Marbtins, em 5 de setembro
2012.[11] Cuida-se da distinção entre atos administrativos equiparáveis
a sentenças e aqueles que não se enquadram nesse conceito. Nesse
precedente, o objeto da controvérsia era a natureza do ato de mudança de
nome de família.
No Direito alemão, parágrafo 1.355, BGB, essa alteração far-se-á por
meio do Registro Civil das pessoas naturais, independentemente de
qualquer intervenção judicial. O relator entendeu que existiria o
elemento de equiparação e, com isso, seria possível julgar a causa com
base no juízo deliberatório do artigo 15, caput, da LINDB. É bem
provável que surjam hipóteses símiles no futuro e seria bastante
oportuno tentar se estabelecer um critério geral para sua solução,
inclusive com a mudança de texto da Resolução no 9, de 4 de maio 2005.
O segundo ponto radica-se no paralelismo de formas com o Direito
nacional. Seria realmente necessária a homologação de um ato de Registro
de divórcio extrajudicial realizado no exterior, considerada a simetria
com o artigo 1.124-A, do Código de Processo Civil, introduzido pela Lei
11.441/2007, que permitiu a separação e o divórcio consensuais, desde
que não houvesse filhos menores ou incapazes, por meio de escritura
pública? Como visto, mesmo após a legislação de 2007, as homologações
desses atos continuam a ocorrer no STJ.
A experiência contemporânea no Direito Comparado é indicativa da perda
de força da “cláusula de homologação”. Na Alemanha, a Ordenança
Processual Civil (ZPO-Zivilprozessordnung) prestigia o reconhecimento
automático (automatische Anerkennung) das sentenças declaratórias não
executórias. Se não houver efeitos executórios ou de caráter coativo, no
Direito francês, a homologação é dispensada nas ações de estado.
É semelhante o quadro na Áustria, na Finlândia, na Polônia e na Noruega,
conforme levantamento feito em estudo específico sobre o tema.[12]
Diante desse quadro, talvez a Lei 12.036/2009 não tenha sido uma mudança
conveniente ao Direito brasileiro. A velha Lei de Introdução ao Código
Civil, desrespeitada que foi com a alteração de seu nome histórico, está
a merecer um tratamento melhor do legislador.
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