Consulta-nos o Registro Civil
das Pessoas Jurídicas a respeito da nova classificação das sociedades,
decorrente do Código Civil de 2002, e da conseqüente repercussão dessa
sistemática sobre as atribuições do Registro Público de Empresas Mercantis
(Juntas Comerciais) e do Registro Civil das Pessoas Jurídicas,
formulando-nos as seguintes questões:
a) Como distinguir uma sociedade simples de uma sociedade empresária?
b) Quando, e em que circunstâncias, as sociedades com atividade de
natureza intelectual seriam empresárias?
c) A sociedade com atividade rural, ainda que de grande porte, poderia ser
uma sociedade simples?
d) A pequena empresa poderá ser considerada desde logo uma sociedade
simples?
e) Como situar a sociedade cooperativa nesse contexto?
f) Quais as sociedades cujo registro deverá se processar obrigatoriamente
no Registro Civil das Pessoas Jurídicas, e quais aquelas que poderão optar
entre esse registro e o Registro Público de Empresas Mercantis?
PARECER
I – A UNIFICAÇÃO DO DIREITO PRIVADO
O direito comercial, como ramo distinto do direito civil, surgiu em
decorrência do esforço e do labor dos próprios comerciantes, que não se
conformando com as limitações e o formalismo do direito romano-canônico,
criaram um novo direito, prático e dinâmico, capaz de atender a suas
necessidades e às novas relações e institutos que iam despontando no mundo
dos negócios.
Vivia-se a baixa Idade Média, época em que o comércio e as cidades
floresciam em oposição ao sistema feudal então dominante, cuja base era o
direito civil.
Instalou-se, com efeito, um processo de ruptura entre o direito civil e o
novo direito – o direito dos mercadores – que sendo também uma forma de
direito privado, representava um fator de diferenciação dentro desse
universo comum.
Os comerciantes, através de suas corporações, a partir da própria
experiência, e com base na tradição comum do comércio marítimo,
engendraram todos os grandes institutos do direito comercial, tais como as
sociedades, o seguro e os títulos de crédito, ao tempo em que sedimentavam
princípios e conceitos específicos da nova disciplina.
Ultrapassado o feudalismo, e uma vez estruturados os estados nacionais,
estes se arrogaram, naturalmente, a prerrogativa de ditar o direito, mas
já então a dicotomia do direito privado estava consagrada, e bem refletia
a realidade social vigente. Foram então promulgados, paralelamente aos
ordenamentos e aos códigos de direito civil, os ordenamentos e os códigos
de direito comercial, que regulavam o estatuto do comerciante, os
contratos comerciais, a prescrição em matéria comercial e todos os demais
institutos próprios e característicos da atividade mercantil.
O comerciante, na sua condição originária, era o mercador, ou seja, era
aquele que fazia a compra de mercadorias para revenda, atuando como
intermediário entre o produtor e o consumidor, ou entre um comerciante e
outro comerciante.
O direito comercial terminou por abranger outras categorias que, por suas
afinidades funcionais ou de origem com o comerciante, com este se
identificaram, como é o caso do banqueiro, do industrial, do
transportador, todos envolvidos pela energia própria do mundo dos
negócios.
Estamos falando da riqueza dinâmica, que é própria da atividade negocial,
e que, como tal, se opõe à riqueza estática, peculiar e característica das
atividades ligadas à terra, como a agricultura e a pecuária.
Formaram-se, conseqüentemente, no âmbito da atividade produtiva, duas
ordens distintas, uma ligada aos atos de comércio (compra e venda de
mercadorias, atividades financeiras, atividades industriais etc.), e outra
aos atos civis (agricultura, pecuária, extrativismo etc.).
Conforme se verifica, a distribuição dessas atividades para o âmbito civil
ou comercial não se fundava em razões conceituais, mas, em vez disso, em
contingências de fato, resultantes das necessidades dos comerciantes,
industriais, banqueiros, transportadores.
Tullio Ascarelli, por isso mesmo, divisou “no direito comercial uma
categoria histórica” (Panorama do Direito Comercial, São Paulo, 1947, pág.
22).
Com o passar do tempo, ocorreu, todavia, a chamada comercialização do
direito civil. Ou seja, o direito civil foi aos poucos absorvendo e
incorporando os institutos e princípios do direito comercial, de tal modo
que o fosso outrora existente, e que determinara a bifurcação do direito
privado em dois ramos distintos, perdeu a sua razão de ser, propiciando o
retorno do direito comercial ao âmbito comum do direito privado unificado.
Em 1867, o celebrado jurista brasileiro Teixeira de Freitas já sustentava,
pioneiramente, a tese da unificação do direito privado, que foi retomada,
em 1882, por Cesare Vivante, com grande repercussão.
Ainda no século passado (1919) editava a Suiça o seu Código das
Obrigações, no qual observou a idéia da unificação, o mesmo fazendo a
Itália (1942), com o seu Código Civil.
O novo Código Civil brasileiro, que também é um código de direito privado,
revoga o Código Comercial, salvo no que concerne ao direito da navegação,
reunindo em um mesmo corpo de leis, e sob os mesmos princípios, a matéria
comercial e a matéria civil.
Não mais existem contratos comerciais distintos dos contratos regidos pelo
direito civil. Tampouco permanecem os diferentes prazos de prescrição para
obrigações civis ou comerciais.
Mais do que isso. O conceito jurídico de comerciante deixou de existir,
substituído que foi pelo de empresário. Não se trata, porém, de uma
singela mudança de nomenclatura, posto que as figuras do empresário e do
comerciante não se identificam.
O comerciante era aquele que praticava profissionalmente atos de comércio,
e os atos de comércio correspondiam às atividades que historicamente se
situaram no âmbito do comércio.
O empresário, diferentemente, é o titular da empresa, sendo esta uma
atividade econômica organizada.
Deve-se , entretanto, atentar para o fato de que, com o novo Código Civil,
o complexo normativo aplicável a empresários e não-empresários, e a
sociedades empresárias e sociedades simples, ressalvadas algumas exceções
bastante limitadas, é exatamente o mesmo.
Unificados o direito das obrigações e as modalidades contratuais, assim
como os prazos de prescrição, as diferenças que remanescem se resumem às
seguintes: a) ao sistema de registro, posto que os empresários e as
sociedades empresárias se registram no Registro Público de Empresas
Mercantis (Juntas Comerciais), enquanto as sociedades simples se registram
no Registro Civil das Pessoas Jurídicas; b) ao processo de execução
coletiva, que, para os empresários e sociedades empresárias, observa a lei
de falências e concordatas, ao passo que, em se tratando de
não-empresários e sociedades simples, incide o processo de insolvência
civil; c) ao sistema de escrituração contábil, que é mais rigoroso com
relação aos empresários e às sociedades empresárias.
Guardadas essas divergências, empresários e não-empresários regem-se pelos
mesmos preceitos, podendo-se declarar que os sistemas são bastante
convergentes. Seria mesmo o caso de afirmar-se que a classificação da
pessoa natural ou da sociedade como empresária ou não-empresária apenas
significa uma dose maior de rigor para o empresário no que tange à
escrituração contábil e ao processo de execução coletiva.
As normas de escrituração contábil a serem observadas, compulsoriamente,
por empresários e sociedades empresárias, encontram-se estabelecidas pelo
Código Civil, nos arts. 1.179 e seguintes, que não se dirigem ao
não-empresário e à sociedade simples, os quais apenas se sujeitariam aos
preceitos de escrituração decorrentes da legislação fiscal, e àqueles que,
de acordo com os princípios gerais da contabilidade, fossem necessários a
bem demonstrar a regularidade e os resultados dos seus negócios, tudo de
acordo com as demais normas já anteriormente existentes. E, por força do
disposto no art. 2.037 do Código Civil, o processo de execução coletiva
aplicável a empresários e sociedades empresárias é o que se encontrava
previsto para comerciantes e sociedades comerciais (lei de falências e
concordatas).
A falência e a insolvência civil são processos paralelos, com idêntica
finalidade, qual seja a execução coletiva do devedor insolvente. A
falência envolve procedimentos mais complexos e regras mais gravosas para
o devedor, e pode tipificar o cometimento de crimes falimentares, os quais
não se estendem à insolvência civil.
A concordata é um instituto restrito ao empresário, mas o não-empresário,
de forma análoga, poderá acordar com os seus credores uma forma de
pagamento, que será submetida a homologação judicial. Trata-se de uma
“concordata contratual”... “que se estabelece por acordo entre o devedor e
os credores concorrentes” (Humberto Theodoro Júnior, A Insolvência Civil,
Rio de Janeiro, 1998, pág. 328).
Cabe, pois, enfatizar que empresários e não-empresários, ao se dedicarem,
profissionalmente, ao exercício de atividade econômica, para a produção ou
circulação de bens e serviços, regem-se pelos mesmos princípios e normas,
exceto com relação ao rigor maior que é exigido do empresário no que tange
à escrituração contábil e ao processo de execução coletiva.
II – A NOVA CLASSIFICAÇÃO DAS SOCIEDADES
O Código Civil de 2002 estabeleceu uma nova classificação das sociedades,
considerando-as empresárias ou simples (art. 982) segundo tenham ou não
por “objeto o exercício de uma atividade própria de empresário sujeito a
registro.”
O empresário sujeito a registro encontra-se definido no art. 966, que
assim considera “quem exerce profissionalmente atividade econômica
organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços.”
O cerne da conceituação do empresário e da sociedade empresária
encontra-se portanto no exercício de uma atividade econômica organizada.
É preciso, por conseguinte, elucidar o que se deve entender por atividade
econômica organizada, porquanto, a partir desse entendimento, é que se
poderá construir a linha divisória entre empresário e não-empresário, e,
por via de conseqüência, entre sociedade empresária e sociedade simples.
O direito brasileiro, ao adotar essa classificação, inspirou-se no Código
Civil italiano de 1942, que também é um código de direito privado, e que,
no art. 2082, utiliza os mesmos termos para definir o empresário.
A sistemática acolhida pelo direito brasileiro não se confunde, porém, com
a instituída pela legislação italiana, a qual preserva o conceito jurídico
de comerciante, inclusive enumerando exaustivamente as atividades que se
consideram comerciais (art. 2195 do Código Civil italiano), e que são as
atividades industriais, as propriamente comerciais (intermediação na
circulação de bens), as de transporte, as atividades bancárias e as que
forem auxiliares das precedentes.
No direito brasileiro, abandonou-se por inteiro o conceito jurídico de
comerciante.
A nova classificação funda-se, basicamente, na existência ou não de uma
atividade econômica organizada, que não é senão a empresa.
O empresário e a sociedade empresária exercem a empresa; ausente a
empresa, tem-se a figura do profissional autônomo ou da sociedade simples.
No plano da pessoa natural, despontam, pois, as figuras do profissional
autônomo e do empresário individual, ambos desenvolvendo o seu mister de
forma profissional, voltada para o mercado, com a diferença de que o
primeiro não dispõe de uma atividade organizada, ou seja, de uma estrutura
empresarial, enquanto o segundo apoia a sua atividade em uma organização,
que coordena e dirige, e que é a própria empresa.
No plano das sociedades, verifica-se o mesmo fenômeno, tanto que a
sociedade empresária é a titular de uma empresa, enquanto a sociedade
simples, por não contar com uma organização, desenvolve a sua atividade,
prevalecentemente, a partir do trabalho dos próprios sócios.
A teoria da empresa, conforme se analisará a seguir, contribui para bem
fixar os marcos e os limites que evidenciam as fronteiras entre os
empresários e os não-empresários.
Essa classificação das sociedades, de que estamos tratando, e que as
distribui em empresárias e simples, concerne à natureza estrutural e
funcional da atividade desenvolvida, e se apoia, como demonstrado, na
existência ou inexistência de uma organização; dessa classificação resulta
o regime jurídico da entidade para fins de registro, execução coletiva e
escrituração contábil.
Uma outra classificação, completamente diversa, é a que se refere à forma
ou tipo da sociedade, e, sob esse aspecto, as sociedades podem ser
simples, em nome coletivo, em comandita simples, limitadas, anônimas e em
comandita por ações.
A expressão sociedade simples oferece, é bem de ver, dois sentidos, o
primeiro, já examinado, atinente à natureza da sociedade, e que a
distingue da sociedade empresária, e o segundo referente a uma das formas
ou tipos de sociedade, conforme classificação supra.
A sociedade simples lato sensu (natureza da sociedade) poderá assumir a
forma típica da sociedade simples (sociedade simples stricto sensu – tipo
da sociedade) ou qualquer das outras formas societárias, exceto as das
sociedades por ações (sociedades anônimas e sociedades em comandita por
ações), uma vez que estas são sempre empresárias (art. 982, § único).
Por outro lado, as sociedades empresárias poderão revestir qualquer dos
tipos societários previstos no Código Civil, com exceção do que é próprio
das sociedades simples (art. 983) Também não poderiam adotar a forma da
sociedade cooperativa, que é simples por definição legal (art. 982, §
único), e que conta com um regime especial, que será referido
posteriormente.
III – A TEORIA DA EMPRESA
O Código Civil, ao fundar a definição do empresário no exercício de
atividade econômica organizada, abraçou a teoria da empresa.
O empresário (art. 966) e a sociedade empresária (art. 982) são os
titulares da empresa.
Impõe-se, pois, delucidar o que se deve entender por empresa, para, a
partir desses lindes, identificar o empresário e a sociedade empresária.
A doutrina italiana, a partir das lições de Cesare Vivante e Alfredo
Rocco, foi a principal responsável pelo desenvolvimento do conceito de
empresa, o qual alcançou uma formulação bastante apurada, especialmente em
função das pesquisas preparatórias do Código Civil italiano (Asquini) e
dos estudos de Francesco Ferrara e Tullio Ascarelli.
Francesco Ferrara (Empresarios y Sociedades, Madrid) é esclarecedor:
“Con estos antecedentes, veamos qué se entiende por empresario. Su
concepto lo da el art. 2.080: ‘Es empresario quien ejerce profesionalmente
una actividad económica organizada, dirigida a la producción o cambio de
bienes o servicios.’ Son precisas, pues, las condiciones siguientes: a),
ejercicio de una actividad económica dirigida a la producción o al cambio
de bienes o servicios; b), que la actividad esté organizada; c), que se
ejercite de modo profesional” (pág. 25).
E sobre a organização (pág. 30):
“Y coordinando el artículo 2.082 con los arts. 2.083 y 2.555, resulta que
cuando el primero habla de actividad organizada se refiere a la actividad
que se ejercita organizando el trabajo ajeno, o bien organizando un
complejo de bienes.”
É, por conseguinte, a estrutura organizacional que vai distinguir o
trabalhador autônomo do empresário.
O autônomo exerce a sua atividade econômica de forma pessoal, ou com a
colaboração de auxiliares subalternos ou até mesmo de outros
profissionais, mas o que prevalece é o seu trabalho pessoal.
O mesmo acontece com a sociedade simples, que tem no trabalho pessoal dos
sócios o núcleo de sua atividade produtiva. Ainda que tenha empregados,
estes apenas colaboram, mas o que se exterioriza, prevalecentemente, é o
labor dos próprios sócios, ou de um administrador designado que opere de
forma pessoal.
O empresário e as sociedades empresárias operam através da organização,
posto que esta se sobreleva ao labor pessoal dos sócios, que poderão atuar
como dirigentes, mas que não serão, de forma predominante, os operadores
diretos da atividade-fim exercida.
A empresa demanda um estabelecimento, tanto que não se concebe a
existência de uma estrutura organizacional de pessoas ou de meios
materiais sem que se disponha do instrumento dessa organização, que é o
complexo de bens e pessoas que fazem atuar a empresa.
Mas não basta o estabelecimento, para que se tenha a empresa; é
necessário, para tanto, que esse estabelecimento conte com elementos de
atuação (pessoas ou coisas), que o elevem ao nível da organização.
Não se deve esquecer que o profissional autônomo poderá estabelecer-se,
sem que essa circunstância venha a retirar-lhe a condição de
não-empresário, porquanto o estabelecimento não subentende necessariamente
a organização.
A empresa pressupõe um estabelecimento, mas o estabelecimento por si só
não confere a condição de empresário.
O que separa o empresário e a sociedade empresária , de um lado, do
trabalhador autônomo e da sociedade simples, do outro lado, é exatamente o
requisito da organização, conforme consignado no art. 966 do Código Civil.
Todo empresário deve possuir uma organização, que, segundo Ascarelli (Iniciación
al Estudio del Derecho Mercantil, Barcelona, 1964, pág. 165) terá uma
valoração mais funcional que quantitativa, cuja marca será “la cooperación
de colaboradores o el recurso a bienes concurrentes con el trabajo
personal (de tal forma que la organización podrá referirse a personas o a
medios materiales) ...”
A empresa existe quando as pessoas coordenadas ou os bens materiais
utilizados, no concernente à produção ou à prestação de serviços operados
pela sociedade, suplantam a atuação pessoal dos sócios.
A coordenação, a direção e a supervisão são pertinentes ao empresário ou à
sociedade empresária; o exercício direto do objeto social, vale dizer, a
produção ou a circulação de bens e a prestação de serviços são operadas
pela organização.
Se os próprios sócios, ou principalmente os sócios, operam diretamente o
objeto social, exercendo eles próprios a produção de bens, ou a sua
circulação, ou a prestação de serviços, o que se tem é uma sociedade
simples.
Alguns exemplos ajudarão a melhor precisar a matéria.
A atividade econômica produtiva, da qual devem emergir os exemplos,
compreende, conforme ressaltado pelo jurista português Pinto Furtado
(Curso de Direito das Sociedades, Coimbra, 1986, págs. 212 e 213), “os
gêneros máximos, como o exercício da agricultura, o exercício da
indústria, o exercício do comércio, e os ramos ...”, tais como, no caso do
comércio, o supermercado, o comércio de tecidos, o comércio de perfumes, o
comércio de automóveis, o bar.
Comecemos com o exemplo do comércio de tecidos, a fim de vislumbrar o
exercício dessa mesma atividade por uma sociedade simples e por uma
sociedade empresária.
O comércio de tecidos, se exercido por uma sociedade em que o trabalho dos
sócios é a essência da atividade, posto que são eles próprios que compram
e que revendem, estaremos diante de uma sociedade simples. Os empregados,
meros auxiliares, apenas completam o trabalho dos titulares da sociedade.
Cuidando-se, porém, de comércio de tecidos conduzido por uma estrutura
hierarquizada, que compre e revenda as mercadorias sob a coordenação dos
sócios e administradores sociais que, mesmo presentes, não operam, de
forma prevalecente, o objeto social, a hipótese seria de sociedade
empresária.
Um bar conduzido pelos sócios seria uma sociedade simples, mas se estiver
entregue a um grupo, ainda que diminuto, mas ao qual seja confiada a
realização do objeto social, ter-se-ia a configuração da organização, que
denota a empresa.
Um supermercado, pela dimensão de sua atividade, teria que ser operado por
uma organização, e, por ser assim, a sua condição empresarial resultaria
evidente, o que não ocorreria com uma mercearia a cujos sócios estivesse
entregue, de forma direta, a operação do estabelecimento.
Um restaurante, tanto poderia ser operado pelos próprios sócios, que
atuariam, de forma prevalecente, no atendimento dos clientes, e nesse caso
a sociedade seria simples, ou os sócios apenas coordenariam o trabalho dos
profissionais encarregados de exercer o objeto social – a organização – e
teríamos uma sociedade empresária.
Na área industrial, o objeto social compreende o processo de produção em
escala, que, pela sua própria natureza, demanda uma estrutura
organizacional que envolverá pessoas hierarquicamente ordenadas, além de
máquinas e equipamentos necessários ao processo produtivo. A atividade
industrial, pela sua complexidade, tende a conferir, ao seu titular, em
quase todos os casos, a condição de empresário ou de sociedade empresária.
Uma padaria não deixa de ser uma indústria, mas, em certos casos, se
efetivamente restrita, em sua atividade, ao trabalho dos próprios sócios,
que utilizariam os equipamentos necessários, com a ajuda de meros
auxiliares, pode-se vislumbrar uma sociedade simples. Neste caso,
estaríamos lidando com uma atividade artesanal, que lembra e antecede
historicamente a atividade industrial, mas que com esta não se confunde,
eis que não conta com qualquer estrutura organizacional.
Hoje, com o avanço científico e o automatismo, algumas indústrias quase
não têm empregados, os quais foram substituídos pelo aparato tecnológico,
que processa a matéria prima, elabora o produto, e até mesmo o acondiciona
para o mercado. Nesses casos, ainda que não se tenha uma organização de
pessoas, tem-se a coordenação de meios materiais, e a sociedade
empresária, por essa razão, avulta indiscutível.
Os transportadores, tal como os comerciantes, tanto poderão desenvolver a
sua atividade de forma pessoal, como através de uma organização, daí
decorrendo a sua classificação como sociedade simples ou empresária.
No setor de prestação de serviços, muitas são as variantes. Se, como
quotistas de uma sociedade, cabeleireiros, costureiras, bombeiros,
técnicos em geral, eles e seus auxiliares, mas principalmente eles
próprios, cortam os cabelos da clientela, costuram as roupas encomendadas,
consertam os canos danificados e executam a assistência técnica
solicitada, as correspondentes sociedades, de que participam esses
profissionais, seriam sociedades simples. Estruturada uma organização
nessas sociedade, para o efeito de prestar o serviço a que elas se
propõem, os sócios refluiriam para uma posição de coordenação, deixando a
operação para os empregados, e, como conseqüência, despontaria a sociedade
empresária.
Cabe consignar, entretanto, que o legislador, embora adotando a teoria da
empresa, fê-lo de forma mitigada, uma vez que, em determinadas situações
(trabalho intelectual, atividades rurais e pequena empresa), ainda que
caracterizada a organização, que levaria à identificação do empresário ou
da sociedade empresária, o tratamento a ser aplicado não foi,
necessariamente o concernente ao empresário ou à sociedade empresária.
IV – O TRABALHO INTELECTUAL
O Código Civil, depois de definir (art. 966) o empresário como sendo
aquele que “exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a
produção ou circulação de bens ou de serviços”, ressalva no respectivo
parágrafo único:
“ Art. 966 - .............................
§ único – Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual,
de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de
auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir
elemento de empresa.”
O parágrafo único representa no caso, a toda evidência, uma exceção à
regra estabelecida no caput do artigo.
Pelo caput do artigo, para a configuração do empresário, já seria
necessária a existência de uma organização. O parágrafo único, por
conseguinte, com relação ao trabalho intelectual, dispõe que, mesmo
presente a organização, não se teria a figura do empresário.
O trabalho intelectual, por força de tradição que o considera
qualitativamente distinto da atividade econômica ordinária, ou em função
do que Ascarelli chamou “diversa valoración social”, foi afastado do
conceito de empresa.
A empresa produz. O intelectual cria, e assim a sua criação, por ser uma
emanação do espírito, não seria assimilável aos chamados processos
produtivos.
O trabalho intelectual constituiria, pois, uma atividade não-empresária,
mesmo quando exercido através de uma organização.
Dessarte, a sociedade cujo objeto social compreenda a realização de um
trabalho de caráter intelectual será sempre e necessariamente uma
sociedade simples, afora tão-somente as situações em que o trabalho
intelectual represente um elemento de empresa.
Trabalho intelectual, segundo a própria lei, é o que apresente natureza
científica, literária ou artística. Trata-se, portanto, de conceito
bastante abrangente de todo o espectro intelectivo, como tal compreendendo
o campo da ciência, que é auto-explicativo, o campo literário, que se
desdobrará em suas várias manifestações, inclusive as de índole popular, e
o campo da arte, este naturalmente circunscrito às expressões artísticas
de cunho intelectual, tais como as artes plásticas, a música, a dança, o
teatro, pouco importando para esse fim o seu caráter erudito ou popular.
Todas as sociedades que se dedicam à criação intelectual serão pois
sociedades simples, independentemente de possuírem ou não uma estrutura
organizacional própria de empresa.
A ressalva posta pelo legislador somente se aplicaria às hipóteses em que
o trabalho intelectual assumisse a condição de elemento de empresa.
A questão , pois, resume-se na clarificação do que se deve entender por
trabalho intelectual como elemento de empresa.
Ascarelli (obra citada, pág. 158), depois de referir-se à condição não
empresarial do trabalho intelectual, aduz:
“La solución debe ser opuesta para el caso de una sociedad que, con el
ejercicio de su actividad ofrezca los servicios de profesionales, por
ejemplo, a través de casas de salud o de cura, asi como también la
hipótesis del empresario (art. 2.338), cuando la actividad profesional (aúm
predominante) sea un elemento (como en la citada hipótesis de las casas de
cura) de una actividad (empresarial).”
O notável comercialista italiano oferece-nos a clave para desvendar o que
seria o trabalho intelectual como elemento de empresa, ao referir-se à
sociedade que, “com o exercício de sua atividade, ofereça os serviços de
profissionais” (intelectuais), exemplificando com as casas de saúde e os
sanatórios.
O trabalho intelectual seria um elemento de empresa quando representasse
um mero componente, às vezes até o mais importante, do produto ou serviço
fornecido pela empresa, mas não esse produto ou serviço em si mesmo.
A casa de saúde ou o hospital seriam uma sociedade empresária porque, não
obstante o labor científico dos médicos seja extremamente relevante, é
esse labor apenas um componente do objeto social, tanto que um hospital
compreende hotelaria, farmácia, equipamentos de alta tecnologia, além de
salas de cirurgia e de exames com todo um aparato de meios materiais.
Uma clínica médica, ou um laboratório de análises clínicas (uniprofissional
ou não), compostos por vários profissionais sócios e contratados, ainda
que dotados de uma estrutura organizacional, mas cujo produto fosse o
próprio serviço médico, que se exerceria através de consultas,
diagnósticos e exames, e que portanto teriam no exercício de profissão de
natureza intelectual a base de sua atividade, seriam evidentemente uma
sociedade simples.
No primeiro caso (o hospital), o trabalho intelectual é uma elemento da
empresa (um componente); no segundo caso (a clínica médica), o trabalho
intelectual é o próprio serviço oferecido pela sociedade.
A palavra “elemento”, inclusive quando se invoca o seu sentido
lexicográfico, corrobora essa noção de “componente”, a que estamos
recorrendo:
“Elemento – (...) Tudo que entra na composição doutra coisa e serve para
formá-la: As palavras são os elementos do discurso; o enxofre, o salitre e
o carvão são os elementos da pólvora. (...) (Dicionário Contemporâneo da
Língua Portuguesa, Caldas Aulete, Editora Delta, 1970).
O trabalho intelectual somente se reduziria a um elemento de empresa
quando, considerada a sociedade e o seu objeto social, a criação
científica, literária ou artística apenas representasse um componente
desse objeto, isto é, uma parcela do produto ou serviço oferecido pela
empresa ao mercado, jamais o próprio produto ou serviço.
Convém repassar outros exemplos.
Uma sociedade de pesquisa científica pura seria uma sociedade simples. Se,
no entanto, a pesquisa se destina ao aperfeiçoamento dos produtos
desenvolvidos industrialmente pela sociedade, o trabalho intelectual não
passaria de um componente – elemento de empresa – e a sociedade seria
empresária.
A sociedade que concebe roteiros para a televisão desenvolve um trabalho
literário, próprio de sociedade simples, mas se esse trabalho é produzido
pela própria sociedade que, concomitantemente, é uma emissora de
televisão, a criação literária seria elemento da empresa, e a sociedade
seria empresária, posto que o produto final não seria a criação
intelectual propriamente dita.
Uma sociedade que reuna artistas plásticos, inclusive contratados, e que
pintem e exponham apoiados em uma organização, seria simples, mas a
sociedade que, a partir desse trabalho intelectual, promovesse a sua
reprodução em série para distribuição no mercado, seria empresária.
Uma sociedade que fosse detentora de uma orquestra sinfônica – o trabalho
artístico – e explorasse as suas exibições, seria simples, mas uma
sociedade voltada para a exploração fonográfica dessas “performances”
estaria utilizando o trabalho artístico como elemento de empresa, e seria
empresária.
Uma sociedade dedicada à elaboração de projetos de engenharia seria uma
sociedade simples – trabalho científico; a que se dedicasse também, e de
forma preponderante, à execução desses projetos seria empresária, tanto
que o trabalho científico dos engenheiros seria um elemento da empresa,
cujo produto final seria, não o esforço de criação dos engenheiros, mas,
em vez disso, a obra realizada, com seus vários componentes.
Uma sociedade aplicada ao ensino, qualquer que fosse a dimensão da
organização, seria necessariamente simples, considerando que o produto
oferecido pela entidade é o próprio conhecimento. Ainda que dotada de
internato, e, por conseguinte, de alguma hotelaria, esta seria de molde
puramente subsidiário e auxiliar, não interferindo na qualificação do
objeto social da sociedade, nem tampouco deslocando o trabalho intelectual
para a posição de elemento da empresa.
V – A ATIVIDADE RURAL
O Código Civil, no art. 970, prevê que “a lei assegurará tratamento
diferenciado e simplificado ao empresário rural e ao pequeno empresário,
quanto à inscrição e aos efeitos daí decorrentes.”
E depois enuncia
“Art. 971 – O empresário, cuja atividade rural constitua sua principal
profissão, pode, observadas as formalidades de que tratam o art. 968 e
seus parágrafos, requerer inscrição no Registro Público de Empresas
Mercantis da respectiva sede, caso em que, depois de inscrito, ficará
equiparado, para todos os efeitos, ao empresário sujeito a registro.”
Esse tratamento diferenciado, que a lei asseguraria, já se encontra
estabelecido pelo próprio Código Civil, tanto que o empresário rural
“pode”, essa é uma opção sua, requerer inscrição no Registro de Empresas,
e, uma vez inscrito, ficará equiparado, para todos os efeitos, ao
empresário sujeito a registo.
Ora, se uma vez inscrito no Registro de Empresas, ficará equiparado ao
empresário sujeito a registro, enquanto não inscrito desfrutará das
condições próprias do não-empresário.
O mesmo se diga em relação à sociedade:
“Art. 984 – A sociedade que tenha por objeto o exercício de atividade
própria de empresário rural e seja constituída ou transformada, de acordo
com um dos tipos de sociedade empresária, pode, com as formalidades do
art. 968, requerer inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da
sua sede, caso em que, depois de inscrita, ficará equiparada, para todos
os efeitos, à sociedade empresária.”
Se a sociedade com atividade rural pode – é também uma opção –
inscrever-se no Registro de Empresas equiparando-se à sociedade
empresária, enquanto não o fizer será uma sociedade simples, e como
conseqüência deverá inscrever-se no Registro Civil das Pessoas Jurídicas.
A sociedade com atividade rural, se não for empresária – vale dizer, se
não contar com uma organização – será necessariamente uma sociedade
simples. Dotada de organização, poderá optar, livremente, entre a condição
de sociedade simples e a condição de sociedade empresária.
Para qualificar-se como sociedade empresária, não poderá revestir a forma
típica de sociedade simples, e, se esta for a sua forma, cumprirá
transformar-se para, em seguida, requerer a sua inscrição no Registro de
Empresas.
Se e enquanto não requerer a sua inscrição no Registro de Empresas, deverá
a sociedade rural inscrever-se no Registro Civil das Pessoas Jurídicas,
assim assegurando a sua condição de sociedade simples.
A sociedade rural desfruta, pois, de uma situação singular. Mesmo sendo
uma empresa, cabe-lhe escolher o seu status jurídico, de sociedade simples
ou empresária, para tanto bastando optar, respectivamente, pelo Registro
Civil das Pessoa Jurídicas ou pelo Registro Público de Empresas Mercantis.
Essa especial situação da empresa rural deita as suas origens na tradição
e no contexto histórico que sempre reservaram ao produtor rural um regime
diferenciado.
A empresa rural compreende todas as atividades que têm na terra o fator
principal de sua realização. Neste gênero se situam a agricultura, a
pecuária, a silvicultura, o extrativismo, a caça. As atividades conexas,
tais como as de beneficiamento dos produtos rurais, promovidas localmente,
a fim de adequá-los à comercialização, também se integrariam nesse mesmo
contexto.
Pode-se, então, assentar que o empresário individual rural não se encontra
sujeito a registro, mas poderá promovê-lo, passando a ser tratado
formalmente como empresário, e que a sociedade empresária rural,
independentemente de seu porte ou patrimônio, poderá optar entre
inscrever-se no Registro Civil das Pessoas Jurídicas, assumindo a condição
de uma sociedade simples, ou no Registro Público de Empresas Mercantis,
assumindo a condição formal de sociedade empresária.
É curiosa a situação aqui analisada. Estamos falando de uma sociedade
empresária que será tratada ou não como sociedade empresária, segundo o
registro adotado. Mas é exatamente isto. A empresa rural pode preferir o
status de sociedade simples e, como conseqüência, não se sujeitará à lei
de falências e concordatas, nem a processos mais rigorosos de escrituração
contábil
VI – A PEQUENA EMPRESA
Assim dispõe o Código Civil:
“Art. 970 – A lei assegurará tratamento favorecido, diferenciado e
simplificado ao empresário rural e ao pequeno empresário, quanto à
inscrição e aos efeitos daí decorrentes.”
Essa norma, ao dispor que a lei (outra lei) asseguraria tratamento
diferenciado, simplificado e favorecido ao empresário rural e ao pequeno
empresário, incorreu em evidente atecnicismo, posto que se arrogou a
condição de preceito constitucional, sob a forma de “norma de eficácia
limitada.”
O art. 970 Código Civil, por uma interpretação literal e restrita, estaria
desprovido de toda e qualquer eficácia, pois, como é intuitivo, não
haveria necessidade de uma lei para preconizar que outra lei da mesma
hierarquia poderia dispor neste ou naquele sentido, principalmente porque
a lei ordinária não se destina a traçar metas legislativas.
Todo preceito legal, por definição, apresenta um conteúdo normativo que
deve ser perseguido pelo intérprete, a fim de que a norma alcance a
efetividade que é inerente a sua natureza.
No caso do empresário rural, conforme analisado no item anterior, o
próprio Código Civil integrou a norma do art. 970, através das normas dos
arts. 971 e 984.
Com relação ao pequeno empresário, o que se tem, na verdade, é uma norma
em branco, mas apenas no que tange ao conceito de pequeno empresário, que
é remetido à lei (a outra lei), posto que o conteúdo da norma, consistente
no “tratamento favorecido, diferenciado e simplificado” que será
assegurado ao pequeno empresário, esse já se encontra enunciado no próprio
preceito, que se refere, para esse fim, “à inscrição e aos efeitos daí
decorrentes.”
O tratamento favorecido, diferenciado e simplificado que se pode conferir
ao empresário, no que tange à inscrição e aos seus efeitos, é o que
decorre da vinculação ao Registro Civil das Pessoas Jurídicas, que traz
como conseqüência, conforme demonstrado no item I deste parecer, a
simplificação e a diferenciação do processo de execução coletiva e de
escrituração contábil, representando uma forma de favorecimento que atende
inclusive ao disposto no art. 197 da Constituição Federal, onde se dispõe
a respeito da simplificação das obrigações das empresas de pequeno porte.
A definição de pequena empresa, para os efeitos do art. 970 do Código
Civil, poderá ser instituída por lei especial a esse fim destinada, mas,
enquanto tal não ocorrer, essa definição poderá ser encontrada em outras
leis federais que, no intuito de regulamentar o referido art. 179 da
Constituição Federal, tenham fixado os parâmetros do que se deve entender
por pequena empresa.
A Lei Federal nº 9.841, de 15.10.99, considerou empresa de pequeno porte
(pequena empresa) “a pessoa jurídica e a firma individual” com receita
bruta anual igual ou inferior a R$ 1.200.000,00, valor este sujeito a
atualização, por ato do poder executivo, de acordo com a variação do IGP-DI.
O ponto relevante da Lei nº 9.841/99, no que concerne à matéria ora
examinada, qual seja a integração da norma em branco, cinge-se à
caracterização da pequena empresa, e, para tanto, importa tão-somente o
faturamento. Os demais aspectos disciplinados nessa lei dizem respeito a
regime previdenciário e trabalhista, apoio creditício e desenvolvimento
empresarial, matérias estranhas ao objeto deste estudo. Além disso, a
qualificação de pequena empresa para os fins do art. 970 do Código Civil
não guarda qualquer relação direta com o seu enquadramento para os efeitos
dos benefícios tributários conferidos à microempresa e à empresa de
pequeno porte. A sociedade pode, portanto, inscrever-se como pequena
empresa, e, a despeito disso, não pleitear o seu enquadramento como
microempresa (ME) ou empresa de pequeno porte (EPP).
As sociedades empresárias com faturamento igual ou inferior a um milhão e
duzentos mil reais encontram-se, pois, legalmente autorizadas a promover a
sua inscrição no Registro Civil das Pessoas Jurídicas, com o que terão
assegurado o tratamento mais simplificado que desse registro resulta
quanto ao processo de execução coletiva e quanto à sistemática de
escrituração contábil.
Essas sociedades, mesmo com a natureza de empresárias, serão regidas como
se não o fossem, assim se equiparando às sociedades simples.
VII – A COOPERATIVA
A chamada sociedade cooperativa situa-se evidentemente no âmbito do
fenômeno associativo, mas representa uma categoria especial, posto que se
coloca entre a associação e a sociedade.
Não se destina a produzir lucros para distribuição aos seus sócios de
acordo com a participação no capital. O seu objetivo é desenvolver
atividades de interesse dos sócios, podendo essas atividades serem
lucrativas, mas esses lucros serão distribuídos aos sócios
“proporcionalmente ao valor das operações efetuados pelo sócio com a
sociedade, ...” (art. 1.094, VII, do Código Civil).
Por isso mesmo, já se afirmou que os sócios de uma cooperativa são
concomitantemente seus clientes (Modesto Carvalhosa, Comentários ao Código
Civil, vol. 13, Saraiva, 2003, pág.400).
A cooperativa é essencialmente mutualista, sendo o seu regime especial, e
por isso mesmo regulada por lei específica, não obstante as suas linhas
gerais estejam definidas no Código Civil.
No regime anterior ao atual Código Civil, era a cooperativa considerada
uma sociedade civil, mas o seu registro fazia-se na Junta Comercial.
Esse registro constituía evidentemente uma anomalia, somente explicável
pelo rígido controle a que se submetia a criação de cooperativas, cujo
funcionamento dependia de autorização do governo federal, a ser concedida
mediante providências articuladas entre o órgão de controle federal e a
Junta Comercial (art. 18 da Lei nº 5.764/71). Sendo a Junta Comercial um
órgão sujeito à supervisão técnica do Departamento Nacional do Registro do
Comércio, que é uma repartição federal, o que se tinha no caso era um
processo integrado de controle.
Com a Constituição Federal de 1988 (art. 5º, XVIII), essa matéria foi
inteiramente reformulada, proclamando-se o princípio da livre criação de
cooperativas:
“Art. 5,º .........................
XVIII – a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas
independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu
funcionamento;”
Vê-se, portanto, que a autorização do governo federal foi revogada por
incompatibilidade com a Constituição Federal, e a razão de ser para o
registro das cooperativas na Junta Comercial, perdera, por via de
conseqüência, a sua consistência. De qualquer sorte, e sem qualquer
motivação, como se fora uma mera reprodução, essa mesma norma constou
também da art. 32, II, “a”, da Lei nº 8.934/94, que dispõe sobre o
registro público das empresas mercantis.
O novo Código Civil (art. 982) preceitua, de forma absoluta:
“Art. 982 - ..................
§ único – Independentemente de seu objeto, considera-se empresária a
sociedade por ações; e, simples, a cooperativa.”
Assim, tal como a sociedade anônima, que é sempre empresária por força de
lei, a sociedade cooperativa, qualquer que seja o seu objeto, será sempre
simples.
E sendo simples, por força do disposto no art. 1.150 do Código Civil, o
seu registro deverá se fazer no Registro Civil das Pessoas Jurídicas.
A matéria suscita, no entanto, a questão da norma especial face à norma
geral.
Seriam os arts. 18, da Lei nº 5.764/71, e 32,II,”a”, da Lei nº 8.934/94,
no tocante às sociedades cooperativas, normas especiais, como tais imunes
ao novo diploma legal?
Sobre o tema, convém invocar a lição de Carlos Maximiliano:
“Do exposto já se deduz que, embora verdadeiro, precisa ser
inteligentemente compreendido e aplicado com alguma cautela o preceito
clássico: ‘A disposição geral não revoga a especial.’ Pode a regra geral
ser concebida de modo que exclua qualquer exceção; ou enumerar
taxativamente as únicas exceções que admite; ou, finalmente, criar um
sistema completo e diferente do que decorre das normas positivas
anteriores: nesses casos o poder eliminatório do preceito geral recente
abrange também as disposições especiais antigas” (Hermenêutica e Aplicação
do Direito, Forense, 2001, pág. 294).
Ou o que preleciona o acatado jurista português José de Oliveira Ascenção:
“Mas no Brasil não se encontra já a dificuldade resultante da exigência de
uma ‘intenção inequívoca do legislador’ para afastar a aplicação desta
regra. Como tal, pode-se admitir com latitude que assim não se passará
todas as vezes que circunstâncias relevantes, em termos de interpretação,
nos permitam concluir que a lei geral nova pretende revogar a lei especial
antiga. Pode por exemplo a lei geral pretender portanto pôr termo a
regimes especiais antigos que deixaram de se justificar. Sempre que se
puder chegar a essa conclusão, a lei especial é revogada pela lei geral”
(O Direito – Interpretação e Teoria Geral, Lisboa, 1980, 2ª edição, pág.
264).
Observa-se, portanto, pela lição autorizada desses mestres, que quando se
institui um sistema completo e diferente do que decorre das normas
anteriores, ou quando os regimes especiais deixam de se justificar, a lei
geral revoga a especial.
E foi exatamente o que ocorreu na presente hipótese. O Código Civil
instituiu um novo sistema de registro fundado nos novos conceitos de
sociedade simples e sociedade empresária, e destinou a primeira ao
Registro Civil e a segunda ao Registro de Empresas. Quais as razões que
persistiriam para o excepcional registro da sociedade cooperativa na Junta
Comercial?
Se nenhuma razão apoia ou justifica essa estranha competência, o novo
sistema, que reequaciona a matéria, deverá ser aplicado com a dimensão
própria de sua abrangência.
Situação diversa, e que por isso mesmo deverá merecer um equacionamento
específico é a que concerne às sociedades de advogados, que são sociedades
simples, mas que, segundo a Lei nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia), devem
ser registradas no conselho seccional da OAB (art. 15, § 1º), ficando
“proibido o registro, nos cartórios do registro civil de pessoas jurídicas
e nas juntas comerciais, de sociedade que inclua, entre suas finalidades,
a atividade de advocacia” (art. 16, § 3º).
Nesse caso, das sociedades de advogados, verifica-se que o registro
diferenciado obedecia a uma razão especial que continua a se justificar,
qual seja o controle da profissão de advogado, que, por ser uma função
essencial à justiça (art. 133 da Constituição Federal), encontra na
fiscalização da OAB um processo de preservação ética.
No que tange às cooperativas, nada justifica a exceção, pelo que o novo
sistema deverá abrangê-las, assim atendendo-se ao objetivo do novo Código
de “criar um sistema completo e diferente do que decorre das normas
positivas anteriores.”
VIII – O SISTEMA DE REGISTRO
O Código Civil ordenou um sistema de registro fundado em duas organizações
preexistentes, o Registro Público de Empresas Mercantis e o Registro Civil
das Pessoas Jurídicas, atribuindo à primeira a inscrição dos empresários
individuais e das sociedades empresárias, e ao segundo a inscrição das
sociedades simples (art. 1.150).
O não-empresário individual, que é o profissional autônomo, especialmente
quando estabelecido, deveria contar também com um órgão de registro, tal
como o empresário individual. E esse órgão seria, naturalmente, o Registro
Civil das Pessoas Jurídicas. Houve , com efeito, uma omissão do
legislador, a ser suprida pelo intérprete, através dos processos de
integração da norma jurídica (art. 4º da Lei de Introdução ao Código
Civil). Cabe aplicar, no caso, a analogia, com base no paralelismo que
identifica a sociedade empresária com o empresário individual e a
sociedade simples com o profissional autônomo estabelecido (“firma
individual não empresária”). Assim, e por essa razão, e para que não
permaneça à míngua de um registro, deverá o profissional autônomo
estabelecido inscrever-se no Registro Civil das Pessoa Jurídicas. No
passado, através de ato publicado do Diário Oficial do Estado do Rio de
Janeiro (Poder Judiciário, Seção I, Estadual, pág. 18), de 16.07.99, já
havia a Corregedoria Geral da Justiça admitido, constituindo assim um
precedente, que as então “firmas individuais de natureza civil” fossem
inscritas nesse registro.
O enquadramento da sociedade como empresária depende (art. 982) de dois
fatores: a) exercício de atividade própria de empresário, que é a
atividade econômica organizada; e b) não incidência das “exceções
expressas”, que são as relativas ao trabalho intelectual, e, por opção, à
atividade rural e à condição de pequeno empresário.
O enquadramento como sociedade simples ocorre por exclusão. Se a sociedade
não é empresária, a sua condição é de sociedade simples.
Esse enquadramento só é rigoroso em suas posições extremas, isto porque
não mais persistem as diferenças do passado, quando existiam, para as
sociedades, dois códigos e dois estatutos jurídicos inteiramente díspares.
Hoje, com a convergência dos regimes, a diversidade de registros
condiciona efeitos bastante limitados, e que se resumem, como já
demonstrado, ao maior ou menor rigor a que se submetem.
A divisão (simples/empresária) é de natureza técnica, e tem sentido
funcional, de modo a tornar mais complexa a vida do empresário e mais
simples a vida do não-empresário.
Essa separação coloca em uma das posições extremas as sociedades por
ações, que, por uma presunção legal absoluta (iuris et de iure), serão
sempre empresárias. É que a sociedade anônima e a sociedade em comandita
por ações detêm uma estrutura jurídica destinada aos grandes negócios,
complexos por si mesmos. Serão empresárias por força de lei.
Na outra posição extrema encontra-se a sociedade simples stricto sensu
que, por adotar uma forma exclusiva de sociedade simples, não poderá
desenvolver atividades próprias de sociedade empresária, salvo se estas se
enquadrarem nas exceções legais (atividades intelectuais, rurais, ou de
pequena empresa).
As sociedades em nome coletivo, em comandita simples e limitadas tanto
poderão ser simples como empresárias, e, para esse efeito, deve-se indagar
a respeito da estrutura organizacional.
Essa questão da organização, em determinadas situações, poderá dirigir-se
para uma zona cinzenta, de difícil definição; nesses casos, os próprios
organizadores, segundo a sua avaliação, indicarão o caminho, inscrevendo a
sociedade no Registro Civil ou no Registro de Empresas. Nessas situações
imprecisas, qualquer que seja o registro, a sociedade será regular, e
desse registro resultará a sua condição de sociedade simples ou
empresária.
O Código Civil, ao disciplinar a sociedade em comum, que seria a sociedade
irregular, assim considera aquela que não se inscreveu (art. 986).
A irregularidade estaria na falta de inscrição, não na inscrição
inadequada, tanto que a finalidade do registro, que é a publicidade e a
fiscalização do cumprimento dos preceitos legais aplicáveis, estaria, de
qualquer sorte, assegurada. A irregularidade (registro impróprio)
ocorreria apenas quando a inadequação do registro fosse manifesta, ou
quando houvesse evidente intuito de fraudar a lei. Nesses casos, o
registro poderia ser desconstituído, ou ter os seus efeitos afastados, por
decisão judicial.
Além disso, no momento da constituição da sociedade, a estrutura que se
pretende conferir-lhe nem sempre estará claramente evidenciada. Por outro
lado, essa estrutura poderá compor-se, progressivamente, com o passar do
tempo, quando a sociedade deveria se converter em sociedade empresária,
mediante o registro na Junta Comercial, e conseqüente baixa no Registro
Civil, tudo precedido, quando necessário, da competente transformação
(ajuste do tipo). A hipótese inversa também poderá acontecer, com a
conversão da sociedade empresária em sociedade simples.
O Registro Civil e a Junta Comercial, afora as hipóteses de enquadramento
evidente, deverão aceitar, nas situações imprecisas, as declarações dos
próprios sócios, e a manifestação de vontade dos requerentes.
As sociedades rurais e as pequenas empresas, ainda que empresárias por
natureza, poderão se enquadrar como sociedades simples, mediante opção
pelo Registro Civil.
A sociedade voltada para a atividade intelectual é simples por exclusão
legal, exceto quando o trabalho intelectual for um componente do produto
ou serviço oferecido pela empresa.
IX – CONCLUSÃO
As questões apresentadas, na ordem em que foram formuladas, podem ser
assim respondidas:
a) As sociedades simples distinguem-se das empresárias em virtude da
característica da atividade econômica organizada, que é própria das
sociedades empresárias, e que se manifesta através da prevalência da
organização de pessoas ou meios materiais sobre o trabalho pessoal dos
sócios.
b) As sociedades com atividade de natureza intelectual, mesmo quando
disponham de uma estrutura empresarial, são simples por definição legal, e
somente seriam empresárias quando o trabalho intelectual representasse um
simples componente do produto ou serviço oferecido pela sociedade ao
mercado.
c) A sociedade com atividade rural, qualquer que seja o seu porte e o seu
patrimônio, poderá ser simples, desde que se inscreva no Registro Civil
das Pessoas Jurídicas.
d) A pequena empresa, tal como definida em lei federal, ainda que
empresária em decorrência de sua estrutura organizacional, poderá desde
logo, registrando-se no Registro Civil das Pessoas Jurídicas, assumir o
status jurídico de uma sociedade simples.
e) A sociedade cooperativa é sociedade simples por força de lei, e, como
tal, em decorrência do novo sistema de registro, deverá inscrever-se no
Registro Civil das Pessoas Jurídicas.
f) Deverão inscrever-se obrigatoriamente no Registro Civil das Pessoas
Jurídicas: 1) as sociedades simples stricto sensu; 2) as sociedades
cooperativas; 3) as sociedades não-empresárias sob as formas de sociedade
em nome coletivo, sociedade em comandita simples e sociedade limitada; 4)
as sociedades empresárias de natureza intelectual.
Deverão inscrever-se obrigatoriamente no Registro Público de Empresas
Mercantis:
1) as sociedades anônimas; 2) as sociedades em comandita por ações; 3) as
sociedades empresárias sob as formas de sociedade em nome coletivo,
sociedade em comandita simples e sociedade limitada, exceto as de natureza
intelectual, as que se dediquem a atividade de natureza rural e a pequena
empresa.
Poderão optar pela inscrição no Registro Civil das Pessoas Jurídicas ou no
Registro Público de Empresas Mercantis: as sociedades empresárias com
atividade de natureza rural e as que apresentem a condição de pequena
empresa.
É o que nos parece.
Rio de Janeiro, 07 de julho de 2003.
JOSÉ EDWALDO TAVARES BORBA
Advogado especialista em Direito Empresarial no Rio de Janeiro, Procurador
do Estado do Rio de Janeiro, professor da Fundação Getúlio Vargas, Escola
da Magistratura, autor de diversas obras jurídicas, entre elas “Direito
Societário” – Ed. Renovar, 2003 – 8ª edição.
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