José Renato Nalini
O julgamento que a sociedade faz de seu
Judiciário não é ufanista. Ao contrário, reflete a disfuncionalidade de um
serviço público preordenado a solucionar problemas, convertido muita vez
em outro problema. E o pior: aparentemente insolúvel. Acostumada a um
ritmo de prestações estatais e privadas impulsionado pelas modernas
tecnologias, a coletividade repudia a invencível morosidade da Justiça.
O tema é objeto de preocupação do CNJ, que estipulou metas a serem
atendidas pelos juízes, causa de não poucas polêmicas. Mas também
constitui foco de atenção de estudiosos que aprenderam a se preocupar com
a Justiça, conscientes de que todas as questões contemporâneas, cedo ou
tarde, chegam aos tribunais.
A resposta clássica de grande parte do Judiciário para os reclamos de
maior celeridade começa com a menção ao excesso de demanda. Efetivamente,
os números da Justiça brasileira são inimagináveis para qualquer outro
país. São milhões de processos que atravancam os fóruns e impedem a
prestação jurisdicional com a celeridade desejável.
Em seguida, vem o costumeiro argumento em defesa do sistema judicial.
Decidir é função muito peculiar, exercitada por um profissional técnico de
elevada especialização. Julgar reclama reflexão, profunda análise e
ponderação. Serenidade não combina com rapidez. Como corolário, a opção
pela presteza contaminaria o conteúdo decisório, de maneira a comprometer
o ideal da segurança jurídica.
Tudo isso é verdade e pode continuar a ser ofertado como resposta às
críticas. Mas não resolve o problema de uma comunidade sequiosa de
respostas oportunas às suas aflições. A regra é só recorrer ao Judiciário
quando um direito é vulnerado. O demandante pretende ver restaurado o seu
patrimônio jurídico. Depende do juiz para isso. Houvera outra opção e não
se submeteria às vicissitudes de uma Justiça humana cada vez mais
relativizada por inúmeros fatores.
É tamanho o inconformismo brasileiro com a anomalia de funcionamento do
Judiciário que o constituinte derivado incluiu no já exaustivo rol dos
direitos fundamentais a duração razoável do processo. A Emenda
Constitucional 45/2004 inseriu um inciso 78 ao enunciado do artigo 5º da
Carta republicana. Evidência de que o tempo da Justiça não se tem
revestido de razoabilidade.
Será que não existem outras vertentes a serem exploradas?
Um exercício estimulante seria examinar se o Judiciário, atolado em papel,
se limita ao que lhe é inerente ou não continuaria a responder por
incumbências que, a rigor, são de outros Poderes.
A maior parte dos processos em curso diz respeito a cobrança de dívida
fiscal. Representam milhões as execuções movidas pelo poder público, em
suas várias exteriorizações, contra contribuintes inadimplentes. A
cobrança de dívida não é atribuição jurisdicional. Poderia ser devolvida à
administração pública, sem prejuízo da preservação do direito dos que se
considerarem prejudicados, que recorrerão ao Judiciário se isso for
imprescindível. Tal providência reduziria de imediato as falaciosas
estatísticas de toda a Justiça brasileira. Muitos milhões de demandas
delas desapareceriam se houvesse a subtração das cobranças desacompanhadas
de embargos.
Seria racional essa providência, porque mera cobrança, ausente o
inconformismo do devedor, não é lide. Não há pretensão resistida. É
burocracia da qual, liberado o Judiciário, poderia melhor atender ao que é
sua função: decidir litígios.
De igual forma, há milhões de processos em todo o Brasil da chamada
Justiça da Infância e da Juventude, cujos problemas não são todos
jurídicos. Ao inverso, quase todos são sociais, econômicos e culturais.
Ressalvada a nobreza dos propósitos que inspiraram a chamada Justiça
Menorística, é demasia colocar sobre os ombros do Judiciário a gravíssima
problemática da infância brasileira, decorrente do declínio dos valores,
da falência da família e da escola.
Outro encargo confiado à Justiça e causador de desgaste é a missão das
execuções penais. Um olhar isento concluiria, sem sobressaltos, que
administrar presídios não é tarefa do Judiciário. Este encerra a sua
função ao aplicar a pena. Fiscalizar o seu cumprimento é obrigação da
administração pública. Tanto que a Secretaria da Administração
Penitenciária integra a estrutura do Poder Executivo.
É o governo que tem condições de adotar projetos mais eficientes de
informatização e de controlar as fases da progressão, cuja inobservância,
por despreparo burocrático da Justiça, gera tanta celeuma e não poucas
rebeliões. Se a informática permite exação nos estoques de mercadorias, se
qualquer grande estabelecimento comercial sabe verificar em seus depósitos
a existência ou não de determinado produto e sua quantidade, qual a
invencível dificuldade de se controlar o estoque de gente que é o sistema
penitenciário?
Outra sugestão seria devolver os serviços estritamente judiciais a esse
tão ignorado segmento formado pelas delegações extrajudiciais. No tempo em
que os escreventes estavam subordinados aos tabeliães e registradores,
havia maior eficiência no trabalho. O ambiente propiciado pelos antigos
"cartórios" - hoje delegações - era favorável ao aprendizado, à
disciplina, às noções de hierarquia e ao respeito devotado à missão de
"fazer justiça".
Ao ampliar o quadro funcional, desprovido de uma política de carreira e
sem escolas de formação dos servidores, o Judiciário criou um cenário
praticamente inadministrável. A devolução desse controle a quem detém
experiência multicentenária implicaria eficiência hoje intangível e
liberaria o juiz para se devotar à única atribuição para a qual o povo o
remunera: julgar dissídios.
Tudo é perfeitamente factível desde que haja ousadia e vontade. O produto
será mais adequada observância da vontade constituinte: uma Justiça rápida
e eficiente. Assim como o povo reclama e merece.
José Renato Nalini, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, é
presidente da Academia Paulista de Letras. |