Jairo Vasconcelos Rodrigues
Carmo
O Código Civil de 2002, só em
relação a veículos, afastou a formalidade do Registro de Títulos e
Documentos como modo exclusivo de aquisição da propriedade fiduciária.
Alegam os agentes financeiros, alheios à tradição e à doutrina, que a mera
anotação da garantia, no certificado de licenciamento, satisfaz à
exigência de publicidade frente a terceiros. Para eles, seduzidos pela
doutrina liberal norte-americana, reconhecida na expressão “Law and
economics”, o registro público é um ônus financeiro despido de valor
jurídico e econômico.
A verdadeira intenção, porém, não é facilitar a sociedade e muito menos o
consumidor de crédito que arca com os emolumentos do registro. Visto o
cerne da questão, a recalcitrância das instituições financeiras deriva da
vontade óbvia de ficarem a salvo de controles, mantendo os contratos de
alienação fiduciária no casulo da clandestinidade. Até a jurisprudência do
STJ, baluarte da defesa dos consumidores e dos direitos fundamentais dos
mais fracos, em perigoso desvio ao pior do liberalismo econômico, pelas
vozes de Laurita Vaz e Peçanha Martins, cedeu ao argumento de que a
“exigência do registro” visa apenas à presunção de publicidade – e
conseqüente eficácia – perante terceiros de boa fé, publicidade essa
possível de atender pelos órgãos de trânsito.
Reduzir tudo ao aspecto da eficácia pela publicidade é atinar a um efeito
reflexo de outro mais importante, ignorando a questão central do Registro
de Títulos e Documentos, que diz respeito ao conteúdo do contrato de
financiamento. A providência de registrar é requisito formal essencial à
validade do contrato de garantia e ato necessário à constituição da
propriedade fiduciária do credor. A função do registro público, portanto,
realiza os três planos deste negócio jurídico complexo: existência,
validade e eficácia real, equilibrando os interesses das partes e de
terceiros.
A propriedade fiduciária, em consonância ao artigo 1.225 do Código Civil,
é espécie de propriedade resolúvel, e não apenas expressão de certo tipo
contratual. Efeito imediato disso é que o direito real de garantia, nos
exatos termos do artigo 1.361, § 1º, carece do registro público do
contrato para constituir-se a propriedade fiduciária. Significa dizer-se:
o registro constitui e publica a propriedade fiduciária, sendo o modo
exclusivo de adquiri-la. Conseguintemente, se faltar o registro, o caso
será de propriedade fiduciária juridicamente inexistente, servindo o
contrato à prova do direito de crédito, mas sem nenhuma eficácia real.
É fundamental valorar-se a função preventiva e econômica do registro
público, nomeadamente depois da Constituição de 1988. Para além da dupla
eficácia – constitutiva e publicitária do direito real – avulta o controle
da legalidade. Na defesa do consumidor de crédito, empenhado na aquisição
de veículo próprio, o controle da legalidade alcança um aspecto
juridicamente relevante: assegurar a transparência pública de informações
nucleares, como preço de venda, capital financiado e valor das prestações
pactuadas; taxa de juro e de abertura de crédito; taxa de quitação
antecipada e o total das tarifas incidentes. Considere-se, a mais, a
especialização da garantia e o exame das cláusulas abusivas. Somente estes
destaques – que não esgotam o controle da legalidade – bem ilustram o
quanto a falta de registro, com o rigor procedimental das Leis 6.015/73 e
8.935/94, pode vulnerar o consumidor de crédito – sujeito
constitucionalmente protegido –, colocando-o em desvantagem exagerada ou
iníqua, incompatível com os ditames da boa fé e da eqüidade.
Parece simples e não é. Bancos e financeiras, embora submetidos ao Código
do Consumidor, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal, prosseguem,
alguns deles, na prática lesiva da assinatura de contratos em branco.
Avilta-se a garantia constitucional de defesa do consumidor, com a
agravante, no plano material, de potenciar-lhe graves perdas financeiras e
a eventualidade de micro-lesões, como exemplificam os débitos sistemáticos
de pequena monta, iludindo o princípio da boa fé objetiva. Eis o efeito
perverso: na aparência de beneficiar o consumidor de crédito, pela
dispensa do registro público, privilegia-se o poder econômico. Como disse
a Professora Cláudia Lima Marques, “... em se tratando de relação de
consumo, envolvendo consumidor, a interpretação deve ser a mais favorável
(...) e às repartições estatais impõe-se o dever de proteger seus direitos
constitucionais (eficácia direta da Constituição aos órgãos do Estado!)”.
Nem vale alegar que o artigo 1.361, § 1º, referido, autoriza a repartição
de trânsito a anotar o gravame no certificado de registro de veículo,
substituindo o Registro de Títulos e Documentos. Ou que é alternativa
registral que excepciona a regra de constituição da propriedade fiduciária
de veículos. Sabe-se que tal dispositivo, nessa parte, padece de
inconstitucionalidade, justo por violar a competência do Poder Judiciário
para fiscalizar a atividade notarial e de registros públicos, impossível
de cumprir-se em órgão do Poder Executivo, afora a circunstância de que
referida atividade não pode ser prestada pelo Estado, direta ou
indiretamente, em concorrência ou supletivamente (cf. Constituição, art.
236 e §§). As lições de juristas consagrados, como Cândido Dinamarco,
Cláudia Lima Marques, Luis Roberto Barroso, Luiz Fachin, Walter Ceneviva,
proferidas em análise ao citado § 1º, proclamam a alto brado a certeza da
inconstitucionalidade.
Isto é sério por atingir em cheio a dois direitos fundamentais de eficácia
imediata. Explico-me: na base do direito de crédito, jaz o direito de
propriedade fiduciária do veículo, mas que é resolúvel a prol do
consumidor, basta que ele liquide o financiamento. A última razão,
portanto, não é o contrato de garantia; é o direito subjetivo de
propriedade do consumidor, que ele transferiu ao banco, conservando a
posse direta do veículo, na qualidade de depositário, titulo esse que, por
estranha ironia, pode levá-lo à prisão se não pagar a dívida e o bem se
perder por roubo, furto, incêndio, avaria.
A realidade, hoje, é que os Departamentos de Trânsito dos Estados,
impossibilitados de bem cumprir a seus fins institucionais, quanto mais
zelar pela defesa imparcial dos direitos do consumidor, sucumbem à
dependência servil dos sistemas informatizados das instituições
financeiras, vindo deles o controle final das inclusões e baixas de
gravames. Na prática, os organismos de trânsito desistiram de suas
prerrogativas legais, cedendo o complexo dos seus dados cadastrais à
iniciativa privada, que os opera e manipula, a seu inteiro arbítrio e
senhorio.
É pacífico o caráter institucional do registro público, contribuindo,
decisivamente, sob variado mosaico de normas, princípios e funções, à
ordenação do Bem Comum. Uma atitude admissível é a liberdade de fazer ou
não o registro do contrato de alienação fiduciária; outra realidade, esta
ilícita, é não fazer o registro constitutivo e dar publicidade pelo órgão
de trânsito de propriedade fiduciária juridicamente inexistente. Outra
agravante é que a singela anotação no certificado administrativo, por não
constituir o direito real, transmuda-se em publicidade enganosa, podendo
causar dano irreparável ao consumidor de crédito e aos terceiros de boa
fé.
Demais disso, a unicidade do sistema de registro público, sob fiscalização
judiciária, expressa uma dimensão específica do ideal de igualdade
material e segurança jurídica concreta. Pois o Oficial Registrador,
profissional do Direito, com a independência da delegação, atua em posição
eqüidistante entre a sociedade e o Estado, harmonizando os interesses do
fornecedor e do consumidor de créditos. Por isso a Constituição veda ao
poder estatal o exercício da atividade registral, direta ou indiretamente,
em concorrência ou supletivamente. Os órgãos de trânsito, portanto, agem
contra a legalidade constitucional quando dispensam o Registro de Títulos
e Documentos, abstraindo, no gesto, até o enunciado da Súmula 489 do STF,
integrada pela Súmula 92 do STJ, concebidas à época do Código Civil
revogado, no propósito de acautelar o terceiro de boa fé, e nunca um meio
de superar a formalidade do registro constitutivo da propriedade
fiduciária de veículos.
Conclusão: o consumidor brasileiro de crédito ignora os custos efetivos do
financiamento. Tudo que sabe é o valor da prestação mensal; a fórmula de
calcular juros, tarifas e acréscimos nem pensar. Aniquilam-se os deveres
de informação qualificada e adequada, previstos no artigo 52 do seu Código
de proteção. O pior prejuízo, contudo, é a quebra da eficácia máxima da
norma constitucional de defesa do consumidor, ainda nos domínios do
sistema financeiro (cf. artigos 5º, XXXII, e 170, V), expondo o interesse
social à escravização econômica. Com efeito, no estágio atual, somente o
Registro de Títulos e Documentos pode assegurar juridicamente a
propriedade fiduciária, ou qualquer outro direito real de garantia da sua
especialidade. Ressalte-se, nesse ponto, uma razão política: é que o
registrador, agindo como guardião da propriedade fiduciária de veículos,
em defesa do consumidor de crédito, exerce inequívoca função social
ordenada à segurança jurídica. Destarte, o respeito à função social dos
registradores integra e concretiza o conteúdo da função social da
propriedade fiduciária vinculada à defesa dos consumidores, estes que, à
míngua de recursos, vêem o financiamento como a única esperança do carro
próprio.
O caminho aberto pela Constituição precisa ser aprimorado e não usurpado
frente à lógica capitalista dos agentes financeiros. As vantagens do
registro público, para o consumidor de crédito, decorrem da sobregarantia
relativamente à legalidade das práticas comerciais, evitando, na origem, o
cantar das ilicitudes. Como observou Paulo Nogueira Batista, em artigo
publicado no “O Globo”, os padrões de comportamento das instituições
financeiras ficam freqüentemente “muito abaixo da crítica”. A sofisticação
das operações, lembra ele, torna o setor cada vez menos transparente “e
mais difícil de regular e supervisionar.
Afora isso, é já anciã a experiência frutuosa de que o Registro de Títulos
e Documentos, revestindo com o selo da fé pública certos negócios
particulares, muito tem colaborado, nesses mais de cem anos, com as metas
atuais de desjudicialização dos conflitos. Quanto ao dever-de-casa dos
Delegatários Registradores, posso afirmar o esforço de todos pela
implantação de um modelo registral moderno e ágil, avantajado pela
informática, acessível, a baixo custo, aberto às legítimas necessidades
dos usuários e da sociedade em geral, com vistas a propiciar-lhes maior
segurança jurídica real e os melhores resultados.
O autor: Jairo Vasconcelos Rodrigues Carmo é professor, Juiz de Direito
aposentado e Oficial do 4º Registro de Títulos e Documentos da cidade do
Rio de Janeiro..