Comprar imóvel com “contrato de gaveta” não é
seguro, mas é prática comum. Acordo particular realizado entre o mutuário
que adquiriu o financiamento com o banco e um terceiro, traz riscos
evidentes. Entre outras situações, o proprietário antigo poderá vender o
imóvel a outra pessoa, o imóvel pode ser penhorado por dívida do antigo
proprietário, o proprietário antigo pode falecer e o imóvel ser inventariado
e destinado aos herdeiros.
Além disso, o próprio vendedor poderá ser prejudicado, caso o comprador
fique devendo taxa condominial ou impostos do imóvel, pois estará sujeito a
ser acionado judicialmente em razão de ainda figurar como proprietário do
imóvel.
Por problemas assim, o “contrato de gaveta” é causa de milhares de processos
nos tribunais, uma vez que 30% dos mutuários brasileiros são usuários desse
tipo de instrumento.
A Caixa Econômica Federal (CEF) considera o “contrato de gaveta” irregular
porque, segundo o artigo 1º da Lei 8.004/90, alterada pela Lei 10.150/00, o
mutuário do Sistema Financeiro de Habitação (SFH) tem que transferir a
terceiros os direitos e obrigações decorrentes do respectivo contrato.
Exige-se que a formalização da venda se dê em ato concomitante à
transferência obrigatória na instituição financiadora.
Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem reconhecido, em
diversos julgados, a possibilidade da realização dos “contratos de gaveta”,
uma vez que considera legítimo que o cessionário do imóvel financiado
discuta em juízo as condições das obrigações e direito assumidos no referido
contrato.
Validade de quitação
O STJ já reconheceu, por exemplo, que se o “contrato de gaveta” já se
consolidou no tempo, com o pagamento de todas as prestações previstas no
contrato, não é possível anular a transferência, por falta de prejuízo
direto ao agente do SFH.
Para os ministros da Primeira Turma, a interveniência do agente financeiro
no processo de transferência do financiamento é obrigatória, por ser o mútuo
hipotecário uma obrigação personalíssima, que não pode ser cedida, no todo
ou em parte, sem expressa concordância do credor.
No entanto, quando o financiamento já foi integralmente pago, com a situação
de fato plenamente consolidada no tempo, é de se aplicar a chamada “teoria
do fato consumado”, reconhecendo-se não haver como considerar inválido e
nulo o “contrato de gaveta” (REsp 355.771).
Em outro julgamento, o mesmo colegiado destacou que, com a edição da Lei
10.150, foi prevista a possibilidade de regularização das transferências
efetuadas até 25 de outubro de 1996 sem a anuência da instituição
financeira, desde que obedecidos os requisitos estabelecidos (REsp 721.232).
“Como se observa, o dispositivo em questão revela a intenção do legislador
de validar os chamados ‘contratos de gaveta’ apenas em relação às
transferências firmadas até 25 de outubro de 1996. Manteve, contudo, a
vedação à cessão de direitos sobre imóvel financiado no âmbito do SFH, sem a
intervenção obrigatória da instituição financeira, realizada posteriormente
àquela data”, afirmou o relator do caso, o então ministro do STJ Teori
Zavascki, hoje no Supremo Tribunal Federal (STF).
No julgamento do Recurso Especial 61.619, a Quarta Turma do STJ entendeu que
é possível o terceiro, adquirente de imóvel de mutuário réu em ação de
execução hipotecária, pagar as prestações atrasadas do financiamento
habitacional, a fim de evitar que o imóvel seja levado a leilão.
Para o colegiado, o terceiro é diretamente interessado na regularização da
dívida, uma vez que celebrou com os mutuários contrato de promessa de compra
e venda, quando lhe foram cedidos os direitos sobre o bem. No caso, a Turma
não estava discutindo a validade, em si, do “contrato de gaveta”, mas sim a
quitação da dívida para evitar o leilão do imóvel.
Revisão de cláusulas
Para o STJ, o cessionário de contrato celebrado sem a cobertura do FCVS
(Fundo de Compensação de Variações Salariais) não tem direito à
transferência do negócio com todas as suas condições originais,
independentemente da concordância da instituição financeira.
O FCVS foi criado no SFH com a finalidade de cobrir o saldo residual que
porventura existisse ao final do contrato de financiamento. Para ter esse
benefício, o mutuário pagava uma contribuição de 3% sobre cada parcela do
financiamento. Até 1987, os mutuários não tinham com o que se preocupar,
pois todos os contratos eram cobertos pelo FCVS. A partir de 1988, ele foi
retirado dos contratos e extinto em definitivo em 1993.
De acordo com a ministra Isabel Gallotti, relatora do caso, o terceiro pode
requerer a regularização do financiamento, caso em que a aceitação dependerá
do agente financeiro e implicará a celebração de novo contrato, com novas
condições financeiras.
Segundo a ministra, quando o contrato é coberto pelo FCVS, o devedor é
apenas substituído e as condições e obrigações do contrato original são
mantidas. Porém, sem a cobertura do FCVS, a transferência ocorre a critério
do agente financeiro e novas condições financeiras são estabelecidas (REsp
1.171.845).
Em outro julgamento, o STJ também entendeu que o cessionário de mútuo
habitacional é parte legítima para propor ação ordinária contra agente
financeiro, objetivando a revisão de cláusula contratual e de débito,
referente a contrato de financiamento imobiliário com cobertura pelo FCVS.
“Perfilho-me à novel orientação jurisprudencial que vem se sedimentando
nesta Corte, considerando ser o cessionário de imóvel financiado pelo SFH
parte legítima para discutir e demandar em juízo questões pertinentes às
obrigações assumidas e aos direitos adquiridos através dos cognominados
‘contratos de gaveta’, porquanto, com o advento da Lei 10.150, o mesmo teve
reconhecido o direito de sub-rogação dos direitos e obrigações do contrato
primitivo”, assinalou o relator do recurso, o ministro Luiz Fux, atualmente
no STF (REsp 627.424).
Seguro habitacional
Exigido pelo SFH, o seguro habitacional garante a integridade do imóvel, que
é a própria garantia do empréstimo, além de assegurar, quando necessário,
que, em eventual retomada do imóvel pelo agente financeiro, o bem sofra a
menor depreciação possível.
No caso de “contrato de gaveta”, a Terceira Turma do STJ decidiu que não é
devido o seguro habitacional com a morte do comprador do imóvel nessa
modalidade, já que a transação foi realizada sem o conhecimento do
financiador e da seguradora (REsp 957.757).
Em seu voto, a relatora, ministra Nancy Andrighi, afirmou que, de fato, não
é possível a transferência do seguro habitacional nos “contratos de gaveta”,
pois nas prestações de mútuo é embutido valor referente ao seguro de vida,
no qual são levadas em consideração questões pessoais do segurado, tais como
idade e comprometimento da renda mensal.
“Ao analisar processos análogos, as Turmas que compõem a Segunda Seção
decidiram que, em contrato de promessa de compra e venda, a morte do
promitente vendedor quita o saldo devedor do contrato de financiamento.
Reconhecer a quitação do contrato de financiamento em razão, também, da
morte do promitente comprador, incorreria este em enriquecimento sem causa,
em detrimento da onerosidade excessiva do agente financeiro”, destacou a
relatora.
Diante dos riscos representados pelo “contrato de gaveta”, o melhor é
regularizar a transferência, quando possível, ou ao menos procurar um
escritório de advocacia para que a operação de compra e venda seja ajustada
com o mínimo de risco para as partes contratantes. |