Segunda-feira, 27 de setembro de
2004
Amaury Ribeiro Jr.
Ministério Público investiga
sistema paralelo de compensação criado pelo Banco do Brasil e dez bancos
privados, que permite a grandes correntistas escapar da cobrança da
contribuição
Brasília – O Ministério Público Federal conseguiu reunir um arsenal
de documentos, que indica uma prática ilícita do Banco do Brasil e de
outros dez bancos privados que permite a empresários e aos grandes
correntistas a sonegar o recolhimento da Contribuição Provisória sobre
Movimentação Financeira (CPMF). Segundo uma análise preliminar de
auditores da Receita Federal e do Banco Central que auxiliam o procurador
da República Lauro Pinto Cardoso Neto nas investigações, cerca de R$ 10
bilhões de CPMF podem estar sendo sonegados, anualmente, por esse grupo de
correntistas privilegiados.
As investigações do MP foram motivadas por denúncia do funcionário do
Banco do Brasil Antônio José Florêncio de Oliveira, que trabalhou durante
mais de 20 anos como caixa da área executiva em Taguatinga, no Distrito
Federal. Na função estratégica, ele atendia exclusivamente os clientes com
contas mais polpudas. Segundo José Florêncio, a diretoria da estatal
criou, por meio de normas internas, um sistema paralelo de compensação que
permite a sonegação do imposto no pagamento de títulos com cheques de seus
clientes.
Florêncio revelou ao MP que, para facilitar a sonegação do imposto, o
banco não deposita nas contas dos correntistas privilegiados os cheques
que os clientes seletos recebem de terceiros nas transações comerciais. O
amontoado de cheques recebidos pelos correntistas privilegiados de seus
respectivos clientes cai diretamente na conta de compensação do banco. Por
ser responsável pela compensação de todos os cheques dos bancos, essa
conta está isenta do recolhimento do CPMF.
Após receberem no verso um endosso do banco e o nome e número da conta do
correntista, os cheques de terceiros depositados na conta de compensação
são utilizados automaticamente para pagar os títulos apresentados pela
clientela seleta aos caixas executivos do banco. Obviamente, como os
cheques não chegam a ser depositados nas contas dos correntistas, no final
do dia toda movimentação financeira realizada por essa forma de pagamento
acaba ficando isenta do recolhimento do imposto. “O correto seria os
empresários depositarem antes os cheques de seus clientes em suas contas
para depois pagarem suas contas, o que implicaria o recolhimento do CPMF”,
afirma Florêncio.
Indignação
Paraibano, que passou fome na infância, o servidor resolveu denunciar o
esquema após assistir a uma reportagem na televisão que mostrava a falta
de leitos nos hospitais do Nordeste. A CPMF foi criada, originalmente,
para financiar a saúde pública. Ao exemplificar os prejuízos causados pelo
esquema aos cofres públicos, o servidor explicou ao procurador que somente
dois correntistas da agência do Banco do Brasil em Taguatinga sonegavam em
torno de R$ 200 mil de CPMF por ano.
Embora as investigações se estendam também aos bancos privados, o
procurador Lauro Pinto está focando suas ações contra a atual diretoria do
BB. Isto porque, apesar de prática usual no sistema financeiro, o banco
estatal oficializou sua operação por meio de uma norma interna assinada
pela atual diretoria. Ao tentar se explicar das acusações, a diretoria
Comercial baixou, em 19 de março de 2003, por meio de circular, uma série
de normas codificadas – registrada no Livro de Instruções e Codificadas (LIC)
do banco –, como forma de regulamentar a prática ilícita. Segundo as
normas, os valores dos cheques de terceiros depositados na conta de
compensação devem ser exatamente iguais aos valores dos títulos a serem
pagos pelos correntistas do banco.
Um amontoado de pareceres jurídicos obtidos pelo Ministério Público indica
que as normas contrariam, a Lei da CPMF e a legislação interna da Receita
Federal. Em 17 de maio de 2000, o ex-secretário Everardo Maciel baixou o
Ato Declaratório nº 33, que proíbe esta prática bancária para evitar a
sonegação. Segundo o ato, “a utilização pelas financeiras, de créditos,
direitos e valores, inclusive os decorrentes de cobrança bancária, não
creditados na conta do depósito do respectivo titular, na liquidação,
compensação ou pagamento de obrigações, do mesmo titular ou não, constitui
infração quando não houver a contribuição provisória do CPMF”.
Nos autos do procedimento de investigação, o procurador Lauro Pinto juntou
parecer da Caixa Econômica – outro banco federal – que proíbe seus
funcionários de adotarem o procedimento denunciado pelo servidor do BB por
considerá-lo ilegal. Com base nessa documentação, o Ministério Público
está finalizando uma ação de improbidade administrativa contra o atual
presidente do banco, Cássio Casseb, o vice, Edson Machado Monteiro, e os
diretores que assinaram as normas que regulamentaram a sonegação. A
conclusão da ação está sendo retardada pela recusa de Casseb em responder
um ofício do procurador Lauro Pinto, que solicita a identificação do nome
dos diretores do banco que assinaram a norma.
O presidente do BB se recusa, ainda, a entregar as cópias de uma auditoria
do banco que apurou as denúncias de sonegação do CPMF e de uma sindicância
que absolveu o servidor Florêncio do crime de agiotagem de dinheiro. O
funcionário afirmou ao Ministério Público que a sindicância, que apurou a
denúncia de que ele teria emprestado dinheiro a colegas de trabalho, foi
instaurada em represália às suas acusações contra instituição.
A briga do presidente do BB com o Ministério Público foi parar no Tribunal
Regional Federal (TRF), onde Casseb obteve, no dia 6 deste mês, um habeas
corpus preventivo – instrumento jurídico usado exclusivamente em processos
criminais –, que o impede de ser processado pelo crime de ocultação de
documentos e obstrução ao processo judicial. O procurador recorreu da
decisão e tenta derrubar o habeas corpus concedido pelo desembargador
federal Hilton Queiroz. O TRF julga nos próximos dias o mérito da causa.
As investigações também atingem o vice-presidente Edson Monteiro. Em
depoimento ao Ministério Público, Florêncio acusou Monteiro de ter tentado
suborná-lo durante um encontro, ocorrido em março deste ano na sede do
Banco do Brasil, com cargos de chefia. Segundo Florêncio, em troca das
promoções, o executivo do banco exigia que o servidor retirasse as
acusações contra o banco estatal. Em depoimento prestado em 9 de agosto,
Monteiro confirmou o encontro com Florêncio, mas negou a tentativa de
suborno. Segundo o vice-presidente do Banco do Brasil, a reunião foi
marcada pelo próprio servidor, que queria discutir sua situação no banco.
BB alega que lei ampara procedimento
Em correspondência enviada ao procurador Lauro Pinto, em 26 de agosto, o
Departamento Jurídico do Banco do Brasil argumentou que o procedimento de
depósito dos cheques está amparado no artigo 17 da Lei da CPMF, que
permite o primeiro endosso de cheque. Mas para o Ministério Público, a lei
é bem clara ao afirmar que a autorização para o endosso, somente permitida
para os cheques sacados na boca do caixa, não é estendida aos documentos
depositados na conta de compensação.
O senador Antero Paes de Barros (PSDB), que em maio deste ano denunciou no
Plenário o envolvimento do banco com o esquema de sonegação da CPMF, disse
ter recebido outra explicação de Casseb. Segundo Antero, Casseb o procurou
e teria afirmado, segundo o senador, que a irregularidade foi uma prática
adotada pelo governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Antero conta
ainda, que dias depois do encontro, Casseb lhe telefonou comunicando que
havia mandado baixar uma nova norma que invalida as instruções normativas
que endossavam a sonegação do imposto.
Um documento confidencial obtido pelo ESTADO DE MINAS mostra que a decisão
de cancelar a instrução normativa foi motivada pela investigação do
Ministério Público e por uma carta circular em que o Banco Central pede
explicações à diretoria do Banco do Brasil sobre o esquema. “Sou da
opinião de que o procedimento operacional adotado para o pagamento de
compromissos de terceiros deve ser temporariamente cancelado em razão de o
assunto ser objeto de denúncia ao Ministério Público e pedido de
manifestação do Banco Central”, afirma o diretor comercial do BB, Antônio
Francisco Neto, em carta endereçada à vice-presidência do banco, em 31 de
maio.
Para o MP, o benefício concedido aos empresários não provocou apenas a
sonegação de imposto: as contas de compensação do banco viraram
verdadeiros esconderijos para abrigar o caixa dois das empresas.
O MP solicita nos próximos dias à Receita uma devassa nos extratos das
contas de compensação do BB e de dez bancos privados. O MP pretende, com a
medida, recuperar por meio de autos de infração todo o dinheiro que foi
sonegado.