Mudança de paradigma
Iniciando a nossa reflexão
sobre o embate conceitual entre o Código Civil de 1916 e a função social
da propriedade no século XXI, podemos afirmar que o Direito Civil
brasileiro, inaugurado com o Código de 1916, tinha o caráter eminentemente
individualista, tendo sido elaborado sob a inspiração do ideário
liberal-iluminista da revolução francesa.
Por outro lado, não podemos considerar que tais concepções eram ou são
boas ou más: primeiro, porque não seria cientificamente correto; segundo,
porque os citados valores eram os mais ajustados à sociedade daquela
época. Com relação a este aspecto, “nada que diz respeito à definição
jurídica do direito de propriedade é a-histórico, pois toda ordem jurídica
é histórica, cultural e politicamente produzida – e modificada”1.
Nesse diapasão, a propriedade no espaço urbano na visão clássica do Código
de Beviláqua era uma célula de um agrupamento residencial e comercial,
muitas vezes não encarado de forma orgânica. Os problemas urbanos
observados atualmente não tinham a dimensão observada no início do século
XX. O direito conformador da propriedade, em 1916, não se dispunha a
invadir o aspecto interno da mesma. Preocupava-se apenas em “proteger” o
bem jurídico da atuação violenta e abusiva do Estado, numa clara
manifestação da separação clássica entre Direito Público e Direito
Privado.
Tudo isso é, no entanto, explicável.
Naquela época, a grande maioria da população vivia no campo e o
Estado-Administração tinha “forças” suficientes para organizar e manter os
equipamentos urbanos com a eficiência exigida. Os administrados eram
poucos e, em conseqüência, a demanda pela atuação estatal de natureza
positiva também. Não existia a crise fiscal da atualidade. A participação
direta da sociedade na esfera administrativa praticamente não existia,
simplesmente porque provavelmente não era necessária.
A partir da década de 1930, o Brasil iniciou um processo acentuado de
industrialização, combinado com a migração no sentido campo-cidades. Estes
fatos ocorreram porque existia a oferta de trabalho nos espaços urbanos,
bem assim porque os camponeses passaram a buscar melhores condições de
vida.
A ironia do destino é que a inicial busca por melhor qualidade de vida,
por mobilidade social, enfim, pela cidadania tornou-se uma das causas de
exclusão social, política e econômica, da pobreza absoluta, da violência e
de tantos outros problemas inerentes às atuais cidades não planejadas.
Nesse sentido, a causa maior dos problemas urbanos vistos na atualidade
pode ser definida como a dicotomia entre a realidade social criada a
partir da década de 1930 e a legislação que regulamentava as urbes à
época.
A vida nas cidades mudou de forma inflacionária, em progressão geométrica,
e os estudos em busca das soluções para os problemas “novos” sempre foram
postergados, talvez porque o câncer da exclusão sócio-urbana estivesse
desenvolvendo-se longe dos “olhos” e do “coração” dos detentores do poder,
do shadow state2, para quem, de fato, sempre coube a produção normativa
oficial.
O direito positivo oficial, que deveria ter um papel de garantidor da
Justiça, passava progressivamente a ter um papel de garantidor de
liberdades negativas (propriedade privada urbana), exclusivamente daqueles
que o produziam, intencionalmente ou não.
Contudo, o aparelho estatal não resistiu à pressão social, porque os
controladores começaram a sentir que o problema, aos poucos, estava
começando a afetar as suas vidas e os seus “direitos”. A partir de 1934,
de forma desorganizada, a legislação urbanística passou a sofrer
modificações, com a adoção do conceito vago de função social da
propriedade (1934) além do surgimento de legislação infra-constitucional,
v. g., a Lei de Parcelamento do Solo Urbano.
Mas foi após a promulgação da Constituição Federal de 1988, com a
instituição de capítulo próprio para a Política Urbana no corpo
constitucional, e com a promulgação da Lei Federal 10.257/01, o Estatuto
da Cidade, que o conceito de propriedade urbana sofreu modificação
significativa, incorporando-se definitivamente à conformação jurídica dela
a noção de função social.
Nestes termos, a propriedade urbana atualmente deve ser destinada à
promoção dos direitos à moradia, à saúde, a um meio-ambiente equilibrado,
ao emprego, enfim, à dignidade da pessoa humana já há muito tempo
consolidado como norte jurídico dos povos.
A função social da propriedade é conceito que propõe uma alteração dos
paradigmas postos pelo modelo “clássico” anteriormente vigente. Para que a
propriedade seja socialmente adequada, não basta que seja legal — no
sentido jurídico-formal do termo, não basta que esteja de acordo com o
código de posturas do município, etc. Para tanto, é necessário que a mesma
não seja destinada à especulação imobiliária, é necessário que ela arque
proporcionalmente com os benefícios e valorizações decorrentes da ação
estatal, constituindo-se este um dos princípios do direito urbanístico.
Nesse ponto podemos observar de que forma se dá o embate conceitual entre
a propriedade individualista estabelecida pelo Código Civil de 1916 e a
propriedade socialmente adequada, da Constituição de 1988, do Estatuto da
Cidade e do Código Civil de 2002.
Enquanto em 1916 o Estado-legislador partia do pressuposto de que todos
são iguais (igualdade formal), hoje o Estado deve exercer as funções
legislativa, administrativa e judicial com a certeza de que vivemos numa
sociedade plural, na qual todos — e alguns mais que outros — são
desiguais.
O Estado liberal-positivista tinha a idéia de Justiça baseada na
generalidade da lei enquanto, atualmente, a Estado pós-moderno deve
guardar a idéia de Justiça na concretização dos direitos, no seu aspecto
material. Por isso, a idéia de função social da propriedade, que surgiu
com vigor pleno entre nós a partir de 1988, com a Constituição Federal, de
2001, com o Estatuto da Cidade e de 2002, com o Código Reale, impõe uma
mudança de paradigma ao sistema jurídico.
E essa mudança de paradigma deve ser concretizada porque o papel do
liberalismo-positivista (que é a raiz do nosso sistema) é o de resguardar
a propriedade urbana individual, fora do contexto da cidade, que é mais
amplo. Na “Cidade”, por outro lado, trata-se de verdadeiro direito de
todos terem uma vida digna, social e economicamente participativa.
Concluindo, observa-se que o embate conceitual entre o Código Civil de
1916 e a função social da propriedade tem vários aspectos, dentre os quais
podemos destacar:
1) social, através do qual se revela a pressão da comunidade municipal por
uma mudança do papel do direito com relação ao problemas urbanos;
2) político, através do qual podemos concluir que as relações
inter-governamentais devem ser desenvolvidas (tanto as relações
União-Municípios, como Estados-Municípios e Municípios-Municípios), com o
fim de buscar, através de ações conjuntas, soluções para os problemas da
propriedade urbana e a ocupação do solo;
3) econômico, tendo em vista que a função social da propriedade é uma
alternativa jurídica para a regularização plena (não só formal, sob o
aspecto da propriedade) das ocupações irregulares, e, via de conseqüência,
propiciando melhores condições para o crescimento sustentado da atividade
produtiva urbana.
Como se vê, afinal, tudo se resume ao ideal de concretização da Justiça
que é um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.
Notas de rodapé:
1. FERNANDES, Edésio. Questões Anteriores ao Direito Urbanístico. Belo
Horizonte: PUC Minas, 2002, p. 43
2. FERNANDES, Edésio. Questões Anteriores ao Direito Urbanístico. Belo
Horizonte: PUC Minas, 2002, p. 43.
Leonardo Gomes Ribeiro Gonçalves: é procurador do estado do Piauí.
Revista Consultor Jurídico