PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
Comarca de Jacareí/SP
2ª Vara da Família e das Sucessões
Corregedoria Permanente do Registro Civil das Pessoas Naturais e de
Interdições e Tutelas
Protocolo nº 1209/2011 (Conversão de União Estável em Casamento).
Vistos.
LUIZ ANDRÉ DE REZENDE MORESI e JOSÉ SÉRGIO SANTOS DE SOUSA, ambos do sexo
masculino, demais qualificações nos autos, protocolaram pedido de
conversão de união estável em casamento.
Instruíram o pedido com escritura pública lavrada em 17/05/2011, perante o
1º Tabelião de Notas e de Protestos de Letras e Títulos de Jacareí/SP
(livro nº.705, fls. 017), onde declararam viver em união estável há 8
(oito) anos.
Foi publicado edital e cumpridas todas as formalidades legas para
habilitação a
casamento, não havendo impugnações.
O pedido foi instruído com declaração de duas testemunhas, no sentido de
que os requerentes mantém convivência pública, contínua e duradoura e
estabelecida com o objetivo de constituição de famí1ia.
O Ministério Público ofertou parecer favorável ao pedido.
É o relatório do necessário. Fundamento e decido.
Preliminarmente, observa-se que, conforme pedido expresso dos autores, os
mesmos pretendem a conversão de alegada união estável em casamento, como
permite e prevê o art. 226, § 3°, parte final, da Constituição Federal, e
o art. 1.726 do Código Civil.
Regulamentando tais dispositivos constitucionais e legais, a Corregedoria
Geral da Justiça de São Paulo, em suas Normas de Serviço (Tomo II,
Capítulo XVII, Seção V, Subseção IV, art. 135), assim disciplinou o
procedimento de conversão da união estável em casamento:
87. A conversão da união estável em casamento deverá ser requerida pelos
conviventes perante o Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais de
seu domicílio. (Nota 2: Provo CGJ 25/2005).
87.1. Recebido o requerimento, será iniciado o processo de habilitação
previsto nos itens 52 a 74 deste capítulo, devendo constar dos editais que
se trata de conversão de união estável em casamento. (Nota 3: Provo CGJ
25/2005).
87.2. Decorrido o prazo legal do edital, os autos serão encaminhados ao
Juiz Corregedor Permanente, salvo se este houver editado portaria nos
moldes previstos no item 66 supra. (Nota 4: Provs. CGJ 25/2005 e 14/2006).
87.3. Estando em termos o pedido, será lavrado o assento da conversão da
união estável em casamento, independentemente de qualquer solenidade,
prescindindo o ato da celebração do matrimônio. (Nota 5: Provs. CGJ
25/2005 e 14/2006).
87.4. O assento da conversão da união estável em casamento será lavrado no
Livro "B", exarando-se o determinado no item 81 deste Capítulo, sem a
indicação da data da celebração, do nome e assinatura do presidente do
ato, dos conviventes e das testemunhas, cujos espaços próprios deverão ser
inutilizados, anotando-se no respectivo termo que se trata de conversão de
união estável em casamento. (Nota 5: Provo CGJ 25/2005).
BLOCO DE ATUALIZAÇÃO N° 28 - CAP. XVII - 31
87.5. A conversão da união estável dependerá da superação dos impedimentos
legais para o casamento, sujeitando-se à adoção do regime matrimonial de
bens, na forma e segundo os preceitos da lei civil. (Nota 1: Provo CGJ
25/2005).
87.6. Não constará do assento de casamento convertido a partir da união
estável, em nenhuma hipótese, a data do início, período ou duração desta.
(Nota 2: Provo CGJ 25/2005).
Resumindo-se, verifica-se que o casamento civil tradicional difere do
casamento por conversão de união estável apenas pela substituição do ato
solene da celebração, presidido pelo ''juiz de paz", pela homologação,
realizada pelo Juiz de Direito responsável pela Corregedoria Permanente do
Registro Civil das Pessoas Naturais da comarca.
No mérito, cumpridas todas as formalidades legais, a questão que se coloca
para análise é a possibilidade ou não de casamento civil entre pessoas do
mesmo sexo, o que se passa a apreciar.
O maior e mais repetido princípio da Constituição da República Federativa
do Brasil é o da igualdade.
A mesma constituição elegeu a "dignidade da pessoa humana" como um de seus
"fundamentos" (art. 1°, inciso 111), e declarou que o Brasil tem como
"objetivos fundamentais" a construção de "uma sociedade livre, ,justa e
solidária", bem como ''promover o bem de todos, SEM PRECONCEITOS de
origem, raça, SEXO, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação"
(art. 3°, incisos I e IV).
Também determina a Constituição Federal que "todos são iguais perante a
lei, sem distinção de qualquer natureza" e que "homens e mulheres são
iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição" (art. 5°,
inciso I).
Mais à frente, no Título "Da Ordem Social", a Lei Maior afirma que "a
famí1ia, base da sociedade, tem especial proteção do Estado" (art. 226,
caput).
Sobre o casamento, a Constituição Federal dispõe que o mesmo "é civil e
gratuita a celebração" (art. 226, § 1°), acrescentando que "o casamento
religioso tem efeito civil, nos termos da lei" (art. 226, § 1°), e que o
casamento ''pode ser dissolvido pelo divórcio" (art. 226, § 6°, com
redação dada pela Emenda Constitucional nO66, de 13/07/2010).
A Constituição Federal também declara que ''para efeito da proteção do
Estado, é reconhecida a união estável (...) como entidade familiar,
DEVENDO A LEI FACILITAR SUA CONVERSÃO EM CASAMENTO", e que "entende-se,
também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais
e seus descendentes" (art. 226, §§ 3° e 4°).
Em harmonia com o princípio da igualdade, nossa Lei Maior enfatiza que "os
direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos
igualmente pelo homem e pela mulher" (art. 226, § 5°).
Aqui cabe abrir parêntesis para alertar que tal dispositivo não
necessariamente declara que casamento existe apenas entre homem e mulher,
até porque "sociedade conjugal não é "casamento", sendo certo que a
primeira sempre pôde ser dissolvida pela "separação" (de jato, judicial e
mais recentemente também extrajudicial), e o segundo somente é dissolvido
pelo "divórcio".
Contudo, aparentemente rompendo todo esse contexto de ênfase no princípio
da igualdade, a Constituição da República Federativa do Brasil, ao
mencionar a união estável em seu art. 226, § 3°, assim se pronunciou: "é
reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade
familiar" (art. 226,§§3°).
Mais de duas décadas passadas desde 05/10/1988, quando foi promulgada a
Constituição da República Federativa do Brasil, e já se ingressando na
segunda década do Século XXI, é público e notório que milhares de pessoas
do mesmo sexo (homens e homens; mulheres e mulheres), compartilham a vida
juntos como se casados fossem.
A ausência de respaldo jurídico a tal realidade social causou inúmeros
prejuízos e injustiças, desde o não reconhecimento do direito à sucessão,
passando pela ausência da presunção legal de esforço comum no patrimônio
constituído, até a ausência de direitos sociais, como a pensão
previdenciária por morte.
Nesse contexto, tramitava perante o Supremo Tribunal Federal a Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF n°. 178 (conhecida como a
Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI n°. 4277), ajuizada pela
Procuradoria-Geral da República, objetivando a declaração de
reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade
familiar. Pedia-se, também, que os mesmos direitos e deveres dos
companheiros nas uniões estáveis fossem estendidos aos companheiros nas
uniões entre pessoas do mesmo sexo.
Também estava em trâmite a ADPF n°. 132, onde o Estado do Rio de Janeiro
alegava que o não reconhecimento da união homoafetiva contrariava
preceitos fundamentais como igualdade, liberdade (da qual decorre a
autonomia da vontade) e o princípio da dignidade da pessoa humana, todos
da Constituição Federal, e pediu que o STF aplicasse o regime jurídico das
uniões estáveis, previsto no artigo 1.723 do Código Civil, às uniões
homoafetivas de funcionários públicos civis do Rio de Janeiro.
Foi nesse contexto que no dia 05 de maio de 2011, o Supremo Tribunal
Federal, no julgamento de tais ações, tendo como relator o Exmo. Ministro
Ayres Britto, reconheceu a união estável para casais do mesmo sexo, dando
interpretação conforme a Constituição Federal, para excluir qualquer
significado do artigo 1.723 do Código Civil que impeça o reconhecimento da
união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar.
Na ocasião, o Exmo. Ministro Ayres Britto foi seguido pelos Exmos.
Ministros Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes,
Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso, bem como Exma Ministras
Cármen Lúcia Antunes Rocha e Ellen Gracie - decorrendo votação unânime dos
presentes.
Tal julgamento, nos termos do art. 102, § 2°, da Constituição Federal,
possui "eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos
demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e
indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.
No caso concreto, aplica-se a conhecida fórmula jurídica romana, segundo a
qual "onde há a mesma razão. aplica-se o mesmo direito" ("ubi eadem ratio,
ibi eadem jus"). Desta forma, os fundamentos de tal julgamento, ainda que
sem o dito efeito vinculante, certamente são aplicáveis ao instituto de
direito civil denominado casamento, inclusive ao mencionado art. 226, §
5°, da Constituição Federal - o que apenas não foi declarado no mencionado
precedente histórico do STF, provavelmente porque não era objeto dos
pedidos das ações em análise.
Os prováveis entraves a tal entendimento podem advir de discriminação e/ou
de convicções religiosas.
Mas o Estado Brasileiro, do qual o Judiciário é um dos Poderes, repudia
constitucionalmente a discriminação e é laico, ou seja, não vinculado a
qualquer religião ou organização religiosa.
É bom e necessário que assim seja, pois alguns dogmas ou orientações
religiosas muitas vezes se chocam com princípios e garantias da
Constituição da República Federativa do Brasil.
A discriminação (ou preconceito) contra homossexuais decorre normalmente
de equívoco sobre a origem "psíquica" do homossexualismo, e de dogmas ou
orientações religiosas.
O equívoco de origem "psíquica" é a crença que o homossexualismo e suas
variantes (transexualismo etc.) ou a união homoafetiva constituem simples
opção sexual.
Tal premissa parece equivocada, porque o fenômeno pelo qual um homem ou
uma mulher se sente atraído(a) por pessoa do mesmo sexo, a ponto às vezes
de repudiar contato íntimo com pessoa do sexo oposto, não se mostra como
uma opção. Tudo indica tratar-se de uma característica individual de
determinados seres humanos, tão independente da vontade quanto a cor do
cabelo, da pele, o caráter, as aptidões etc.
De fato, se no mundo ainda vige forte preconceito contra tais pessoas, e
se as mesmas têm de passar por sofrimentos internos, familiares e sociais
para se reconhecerem para elas próprias e publicamente com homossexuais -
às vezes pagando com a própria vida -, parece que, se pudessem escolher,
optariam pela conduta socialmente mais aceita e tida como normal.
O dogma ou orientação religiosa que de forma mais marcante se opõe ao
casamento entre pessoas do mesmo sexo é a colocação da relação sexual
procriadora como principal elemento ou requisito essencial do casamento.
Ocorre que o motivo maior de uma união humana é - ou deveria ser o Amor,
até porque este é pregado pela maioria das religiões, principalmente as
cristãs, como o valor e a virtude máxima e fundamental.
Fosse de outra forma, muitas religiões não poderiam aprovar casamentos
entre pessoas de sexos opostos que não podem ter filhos. E se assim agem,
parecem afrontar a Lei Cristã do Amor, e prejudicam a formação da entidade
familiar ou famí1ia, que é a base da sociedade.
Por outro enfoque, muitos se preocupam com o potencial envolvimento de
crianças ou adolescentes na entidade familiar formada por pessoas do mesmo
sexo. Mas, se esquecem que a falta de planejamento familiar, da qual
decorre a geração de crianças sem condições mínimas de sustento e
educação, bem como atos abomináveis, como, por exemplo, a remessa de recém
nascidos em latas de lixo ou o assassinato dos próprios filhos, são
diariamente protagonizados por "casais" de sexos opostos ditos "normais"
e/ou por pessoas heterossexuais.
O Brasil, entre outras conhecidas mazelas, é palco da falência da
segurança pública, das fronteiras sem controle, da disseminação
descontrolada das drogas, da endêmica corrupção, e possui a maior carga
tributária, a pior distribuição dos tributos arrecadados e o trânsito que
mais mata do planeta Terra.
Assim, pode-se afirmar que no Brasil há situações de fato e de direito
muito mais graves para se preocupar, que com a vida de dois seres humanos
desejosos de paz e felicidade ao seu modo, sem infringir direitos de
ninguém.
Finalmente, cabe anotar que no último dia 17 de junho de 2011, o Conselho
de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou uma
resolução histórica destinada a promover a igualdade dos seres humanos,
sem distinção de orientação sexual. A resolução, que teve aprovação do
Brasil, embora sem ações afirmativas, dispõe que "todos os seres humanos
nascem livres e iguais no que diz respeito a sua dignidade e cada um pode
se beneficiar do conjunto de direitos e liberdades sem nenhuma distinção".
Por todo o exposto, HOMOLOGO a disposição de vontades declarada pelos
requerentes do presente procedimento, para CONVERTER em CASAMENTO, pelo
regime escolhido da comunhão parcial de bens, a união estável dos mesmos -
os quais, por força deste casamento, passam a se chamar respectivamente
"LUIZ ANDRÉ REZENDE SOUSA MORESI" e "JOSÉ SÉRGIO SOUSA MORESI".
Tratando-se esta sentença de ato judicial que substitui a celebração, a
mesma tem efeitos imediatos. Assim, lavre-se o registro de casamento e
providencie-se o necessário às averbações nos registros dos nascimentos
das partes.
No mais, nada sendo requerido em 30 (trinta) dias, arquivem-se os autos.
P.R.I. Ciência ao Ministério Público.
Jacareí/SP, 27 de junho de 2011.
Fernando Henrique Pinto
Juiz de Direito |